Este ensaio surgiu com o objetivo de ser
pronunciado, a título de apresentação, durante o evento de lançamento da obra Acaso caos, no auditório da Secretaria
de Cultura de Campina Grande-PB, em março de 2013. Posteriormente, foi
publicado no meu livro Ensaios de poesia paraibana (2014). A versão que se
lerá abaixo foi submetida a revisão e recebeu pequenas modificações.
A produção literária de Bruno Gaudêncio tem me
chamado atenção desde os títulos de suas obras. Assim o foi com Ofício de engordar as sombras (2009),
com Cântico voraz do precipício
(2011) e assim está sendo com Acaso Caos (2013). Segundo o Aurélio, “acaso” significa uma série de
causas sem ligação aparente e que terminam por ocasionar um determinado
acontecimento. Já “caos” seria o vazio, a desordem. Seria a poesia, então, para
o poeta campinense, uma desordem surgida a partir da união de uma série de
sentimentos e experiências díspares? Seria a poesia a união do aparentemente
imotivado com o visivelmente perturbador? Percebamos que desde o título a obra
hoje lançada nos convida a pensar.
Mas não apenas o título, mas a obra como um todo,
causou em mim uma enorme empatia. Os temas de Bruno Gaudêncio em muito me
agradam e sua cosmovisão plasmada nos mais ricos leitmotive*, sempre
coerentes com a ideia posta e desenvolvida nos poemas, possui os relevos
daquilo que de mais belo já foi utilizado por grandes nomes da literatura
universal.
Consegui verificar neste livro algumas recorrências
que constantemente vêm à tona nos poemas e que conferem à obra um caráter
sólido e coerente, além de evidenciar que estamos diante de um autor que possui
seu modo de ver o mundo e interpretá-lo, modo este inevitavelmente ancorado em
elementos e imagens que mais fortemente expressam suas inquietudes. A essas
recorrências ou temáticas atribuí alguns termos. Assim, poderia iniciar
afirmando que um primeiro ponto que me chamou atenção foi o fato de haver em
Bruno Gaudêncio uma “poesia do entranhamento”, ou seja, a recorrência constante
a leitmotive ligados ou ao
enclausuramento ou mesmo às estruturas internas do corpo, que conferem à sua
visão de mundo um caráter de interioridade incrível. Termos como “soterrou”,
“intrínseco”, “precipícios”, “internamente”, “cavam”, dão a tônica de um eu
lírico preocupado com os espaços obscuros da existência, de um eu lírico
predominantemente voltado para si mesmo. O poema Retina, mesmo sem esses termos, nos dá um exemplo disto:
O olho do poema
permanece fechado,
fluente em seu acaso,
buscando o caos (p. 28).
Abdicando da contemplação exterior, o poema
(poderíamos dizer o próprio eu lírico) fecha os olhos, dedicando-se à
auscultação do seu próprio caos. Imagem coerente com aquela expressa em Estrangeiros no labirinto (p. 26), onde
o eu lírico é duramente consumido por uma intensa febre interna.
É na abordagem das dores, angústias, incertezas e
desejos de seu “eu” que reside a preocupação central do eu lírico de Bruno
Gaudêncio. Vazio, perdido em si mesmo, atormentado pelas sombras que invadiram
seu ser, resta o ruído dos ossos, talvez o que há de mais rígido e palpável, o
único elemento a perpetuar-se nesse ser perdido.
Uma segunda recorrência extremamente significativa
presente no livro é a poesia metalinguística. Sempre me pareceu curioso o modo
como os poetas têm visto seu próprio labor ao longo dos tempos. Tema
extremamente presente na história da literatura, surgindo quase como uma
necessidade vital do artista de refletir sobre sua constante luta com as
palavras, é na poesia moderna que tem se difundido e universalizado de forma
mais impressionante. Em Bruno Gaudêncio o tema, desde a primeira obra, tem
marcado sua presença.
Logo de cara, em Todo sempre (p. 21), o poeta, demonstrando ter noção da finitude
das relações humanas e da própria efemeridade de nossos sentimentos e decisões,
afirma: “não quero a palavra sempre / não quero a palavra todo”. Ciente das
incertezas que envolvem o futuro, prefere seguir como “ator no mundo”,
protagonizando, numa sucessão de instantes, o eterno drama do presente.
“Nas costas / das metáforas” (Duto, p. 25) o
poeta segue metalinguístico e intertextual, remetendo às Flores do Mal, livro de poemas de Charles Baudelaire. Em outro
ponto (p. 55) a referência é ao conto Terceira
margem do rio, de Guimarães Rosa, deixando claro que sua poesia é o fruto
amargo de uma série de influências. Eu disse amargo porque, antes de conter
influências, é fruto daquele “eu”, que desde o início tem se afirmado lançado
em sombras, no vazio, na solidão.
Uma terceira constante é a poesia de evocação dos
sentidos. É aí que nos é apresentado um intenso e rico caleidoscópio de cores,
sons, aromas, sensações... Como destaquei no posfácio que escrevi para o livro,
as sombras, trazidas da primeira obra (Ofício
de engordar as sombras, 2009), não anulam a possibilidade de haver nos
poemas de Acaso Caos um colorido
especial. No âmbito da visão surge a luz (presente em um bom número de textos),
a cor cinzenta dos olhos da cidade, “o branco ou azul / do medo”, os cabelos
brancos dos homens da praça ou da “rezadeira”. O paladar é evocado em Estrangeiros no labirinto (p. 26), no
devorador olho de Retina (p. 28), no
ato de “chupar cana” de Os anjos de
Augusto (p. 37). A audição é incomodada no silêncio de Cadernos de pele (p. 33) e Silêncio
de Eros (p. 71), mas compensada nas trovoadas poéticas de Nos lábios do guarda-chuva (p. 51). O
tato, muitas vezes marcado pelo não-contato (Poema de circunstância, p. 43), em outros momentos torna-se mesmo o
símbolo material da dor que nasce no interior do eu lírico e termina por lhe
dilacerar o corpo, a pele.
Lógico que esses três complexos significativos em
nada esgotam todas as utilizações do livro, nem tão pouco apresentam-se de modo
isolado, como numa divisão temática. Ao contrário, os três, somados a outros
mais, perpassam todo o livro, muitas vezes unindo-se no corpo de um mesmo
poema. A apresentação em separado, entretanto, parece servir para demonstrar um
pouco da forma variada com que a dicção lírica de Bruno Gaudêncio se plasma em
versos.
Outros temas, porém, surgem em vários momentos do
livro. O erotismo transfigurado em belas imagens de Acaso caos (p. 45) e Embates
(p. 47), o cântico à cidade e aos seus espaços cotidianos de Cântico a Campina (p. 60) e Café Aurora (p. 62) e até mesmo a
contemplação da natureza inspirada pelo amor e a ele inspirando de A urgência do vento (p. 70).
Gostaria também de elencar uma série de palavras,
imagens, recorrências que estão presentes de forma intensa no livro e que
ajudam a compor sua cosmovisão.
As palavras que compõem o título infestam a obra,
contaminando os próprios textos com os sentidos ali expressos. “caos” aparece treze
vezes e “acaso” sete vezes ao longo do livro. Outros termos também são
largamente utilizados, como “olhos” (doze vezes), e “dedos” e “ossos” (seis
vezes cada), o que apenas ressalta o caráter sensitivo de sua poesia, destacado
acima. A palavra “sombras” aparece três vezes, mas vários de seus sinônimos são
bastante utilizados ao longo da obra.
Mas não apenas de palavras se faz o “caos” de Bruno
Gaudêncio. Aliterações e assonâncias enriquecem a sonoridade dos poemas, como
se pode verificar em Ossos (p. 34) e
Danos (p. 30), com o fonema
sibilante /s/ e os fonemas vocálicos /a/ e /o/, além do que se pode verificar
com as plosivas /p/, /t/, /d/ e /k/ em No
ruído dos ossos (p. 29).
Compreendendo o caos como “uma ordem a decifrar”, o
poeta campinense assume a tarefa de, com seus versos, lançar um grito ao acaso
para tentar vencer o que de inexato, traiçoeiro e sombrio envolve o mundo e sua
própria existência. O livro que hoje chega às nossas mãos é denso, reflexivo,
tenso e caótico, mas na melhor das acepções, visto que congrega no curto espaço
de quarenta e três poemas uma vasta gama de aspectos da contraditória mente
humana.
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NOTA:
* Leitmotive
é a forma plural do termo leitmotiv, de origem alemã (que significa “motivo
gerador”), muito utilizado na Teoria da Literatura.
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Professor
Weslley Barbosa