12/04/2023

O CAOS POÉTICO DE BRUNO GAUDÊNCIO

Este ensaio surgiu com o objetivo de ser pronunciado, a título de apresentação, durante o evento de lançamento da obra Acaso caos, no auditório da Secretaria de Cultura de Campina Grande-PB, em março de 2013. Posteriormente, foi publicado no meu livro Ensaios de poesia paraibana (2014). A versão que se lerá abaixo foi submetida a revisão e recebeu pequenas modificações.

         

A produção literária de Bruno Gaudêncio tem me chamado atenção desde os títulos de suas obras. Assim o foi com Ofício de engordar as sombras (2009), com Cântico voraz do precipício (2011) e assim está sendo com Acaso Caos (2013). Segundo o Aurélio, “acaso” significa uma série de causas sem ligação aparente e que terminam por ocasionar um determinado acontecimento. Já “caos” seria o vazio, a desordem. Seria a poesia, então, para o poeta campinense, uma desordem surgida a partir da união de uma série de sentimentos e experiências díspares? Seria a poesia a união do aparentemente imotivado com o visivelmente perturbador? Percebamos que desde o título a obra hoje lançada nos convida a pensar.

 

Mas não apenas o título, mas a obra como um todo, causou em mim uma enorme empatia. Os temas de Bruno Gaudêncio em muito me agradam e sua cosmovisão plasmada nos mais ricos leitmotive*, sempre coerentes com a ideia posta e desenvolvida nos poemas, possui os relevos daquilo que de mais belo já foi utilizado por grandes nomes da literatura universal.

 

Consegui verificar neste livro algumas recorrências que constantemente vêm à tona nos poemas e que conferem à obra um caráter sólido e coerente, além de evidenciar que estamos diante de um autor que possui seu modo de ver o mundo e interpretá-lo, modo este inevitavelmente ancorado em elementos e imagens que mais fortemente expressam suas inquietudes. A essas recorrências ou temáticas atribuí alguns termos. Assim, poderia iniciar afirmando que um primeiro ponto que me chamou atenção foi o fato de haver em Bruno Gaudêncio uma “poesia do entranhamento”, ou seja, a recorrência constante a leitmotive ligados ou ao enclausuramento ou mesmo às estruturas internas do corpo, que conferem à sua visão de mundo um caráter de interioridade incrível. Termos como “soterrou”, “intrínseco”, “precipícios”, “internamente”, “cavam”, dão a tônica de um eu lírico preocupado com os espaços obscuros da existência, de um eu lírico predominantemente voltado para si mesmo. O poema Retina, mesmo sem esses termos, nos dá um exemplo disto:

 

O olho do poema

permanece fechado,

fluente em seu acaso,

buscando o caos (p. 28).

 

Abdicando da contemplação exterior, o poema (poderíamos dizer o próprio eu lírico) fecha os olhos, dedicando-se à auscultação do seu próprio caos. Imagem coerente com aquela expressa em Estrangeiros no labirinto (p. 26), onde o eu lírico é duramente consumido por uma intensa febre interna.

 

É na abordagem das dores, angústias, incertezas e desejos de seu “eu” que reside a preocupação central do eu lírico de Bruno Gaudêncio. Vazio, perdido em si mesmo, atormentado pelas sombras que invadiram seu ser, resta o ruído dos ossos, talvez o que há de mais rígido e palpável, o único elemento a perpetuar-se nesse ser perdido.

 

Uma segunda recorrência extremamente significativa presente no livro é a poesia metalinguística. Sempre me pareceu curioso o modo como os poetas têm visto seu próprio labor ao longo dos tempos. Tema extremamente presente na história da literatura, surgindo quase como uma necessidade vital do artista de refletir sobre sua constante luta com as palavras, é na poesia moderna que tem se difundido e universalizado de forma mais impressionante. Em Bruno Gaudêncio o tema, desde a primeira obra, tem marcado sua presença.

 

Logo de cara, em Todo sempre (p. 21), o poeta, demonstrando ter noção da finitude das relações humanas e da própria efemeridade de nossos sentimentos e decisões, afirma: “não quero a palavra sempre / não quero a palavra todo”. Ciente das incertezas que envolvem o futuro, prefere seguir como “ator no mundo”, protagonizando, numa sucessão de instantes, o eterno drama do presente.

 

“Nas costas / das metáforas” (Duto, p. 25) o poeta segue metalinguístico e intertextual, remetendo às Flores do Mal, livro de poemas de Charles Baudelaire. Em outro ponto (p. 55) a referência é ao conto Terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, deixando claro que sua poesia é o fruto amargo de uma série de influências. Eu disse amargo porque, antes de conter influências, é fruto daquele “eu”, que desde o início tem se afirmado lançado em sombras, no vazio, na solidão.

 

Uma terceira constante é a poesia de evocação dos sentidos. É aí que nos é apresentado um intenso e rico caleidoscópio de cores, sons, aromas, sensações... Como destaquei no posfácio que escrevi para o livro, as sombras, trazidas da primeira obra (Ofício de engordar as sombras, 2009), não anulam a possibilidade de haver nos poemas de Acaso Caos um colorido especial. No âmbito da visão surge a luz (presente em um bom número de textos), a cor cinzenta dos olhos da cidade, “o branco ou azul / do medo”, os cabelos brancos dos homens da praça ou da “rezadeira”. O paladar é evocado em Estrangeiros no labirinto (p. 26), no devorador olho de Retina (p. 28), no ato de “chupar cana” de Os anjos de Augusto (p. 37). A audição é incomodada no silêncio de Cadernos de pele (p. 33) e Silêncio de Eros (p. 71), mas compensada nas trovoadas poéticas de Nos lábios do guarda-chuva (p. 51). O tato, muitas vezes marcado pelo não-contato (Poema de circunstância, p. 43), em outros momentos torna-se mesmo o símbolo material da dor que nasce no interior do eu lírico e termina por lhe dilacerar o corpo, a pele.

 

Lógico que esses três complexos significativos em nada esgotam todas as utilizações do livro, nem tão pouco apresentam-se de modo isolado, como numa divisão temática. Ao contrário, os três, somados a outros mais, perpassam todo o livro, muitas vezes unindo-se no corpo de um mesmo poema. A apresentação em separado, entretanto, parece servir para demonstrar um pouco da forma variada com que a dicção lírica de Bruno Gaudêncio se plasma em versos.

 

Outros temas, porém, surgem em vários momentos do livro. O erotismo transfigurado em belas imagens de Acaso caos (p. 45) e Embates (p. 47), o cântico à cidade e aos seus espaços cotidianos de Cântico a Campina (p. 60) e Café Aurora (p. 62) e até mesmo a contemplação da natureza inspirada pelo amor e a ele inspirando de A urgência do vento (p. 70).

 

Gostaria também de elencar uma série de palavras, imagens, recorrências que estão presentes de forma intensa no livro e que ajudam a compor sua cosmovisão.

 

As palavras que compõem o título infestam a obra, contaminando os próprios textos com os sentidos ali expressos. “caos” aparece treze vezes e “acaso” sete vezes ao longo do livro. Outros termos também são largamente utilizados, como “olhos” (doze vezes), e “dedos” e “ossos” (seis vezes cada), o que apenas ressalta o caráter sensitivo de sua poesia, destacado acima. A palavra “sombras” aparece três vezes, mas vários de seus sinônimos são bastante utilizados ao longo da obra.

 

Mas não apenas de palavras se faz o “caos” de Bruno Gaudêncio. Aliterações e assonâncias enriquecem a sonoridade dos poemas, como se pode verificar em Ossos (p. 34) e Danos (p. 30), com o fonema sibilante /s/ e os fonemas vocálicos /a/ e /o/, além do que se pode verificar com as plosivas /p/, /t/, /d/ e /k/ em No ruído dos ossos (p. 29).

 

Compreendendo o caos como “uma ordem a decifrar”, o poeta campinense assume a tarefa de, com seus versos, lançar um grito ao acaso para tentar vencer o que de inexato, traiçoeiro e sombrio envolve o mundo e sua própria existência. O livro que hoje chega às nossas mãos é denso, reflexivo, tenso e caótico, mas na melhor das acepções, visto que congrega no curto espaço de quarenta e três poemas uma vasta gama de aspectos da contraditória mente humana.

 

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NOTA:

 

* Leitmotive é a forma plural do termo leitmotiv, de origem alemã (que significa “motivo gerador”), muito utilizado na Teoria da Literatura.  

 

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Professor Weslley Barbosa