12/04/2023

A SABOROSA POESIA DE FIDÉLIA CASSANDRA

Este ensaio foi publicado inicialmente no meu livro Ensaios de poesia paraibana (2014). A versão que se lerá abaixo foi submetida a revisão e recebeu pequenas modificações.

  

“O jambo maduro”, a mulher que deseja, o pulsar da vida escorrendo sobre o papel com a cor púrpura de um eu lírico instintivamente feminino, o aroma penetrante como o néctar vertido da mais doce amora. Sensualidade? Erotismo? Amor!

 

Fidélia Cassandra expõe todos esses matizes em seu livro de estreia, Amora (2002), obra carregada de um furor apaixonado e com um ecletismo admirável no que diz respeito à forma dos textos, onde nos deparamos com tercetos, poemas mais longos, letras de canções (uma outra dedicação de Fidélia é em relação à música), etc.

 

Já em termos temáticos, percebemos que a obra tem como principais recorrências os leitmotive ligados ao amor, à paixão, à sensualidade, que não deixam de aparecer nem mesmo quando o foco é a metalinguagem. Assim é que encontramos em Poética VI a poesia como “uma amante” (p. 96) e em Poética XII como um “beijo velado” (p. 102), sendo ambos textos da parte intitulada “Poéticas”.

 

Em “Além das cercas (aroma)”, primeira parte do livro, a sensualidade pulsa em cada página, em cada texto. Das “infinitas cascatas de gozo” (Ficção, p. 25), onde os amantes se unem num caleidoscópico jogo metamórfico, ao “fluido rio escarlate (...) que inunda as coxas” (Rio, p. 29), onde a menstruação marca um erotismo forte e inusitado, os poemas são o ambiente onde cores, sensações, formas e sabores, dão a tônica das relações experimentadas da forma mais intensa pelo eu lírico.

 

O paladar parece ser o sentido mais estimulado, seja na solitária relação com o próprio corpo, seja na comunhão com o corpo do amado. As frutas estão presentes em vários textos, como em Pomo, onde lemos na primeira estrofe:

 

Meu amado me traz maçãs

Vestidas com o mais puro halo

Do pecado (p.28).

 

Há uma visível intertextualidade com a Bíblia, tanto no título (que além de remeter à fruta, geralmente “carnosa”, pode ser perfeitamente associado ao pomo de Adão e, por conseguinte, ao pecado original), quanto na própria presença da maçã, geralmente utilizada para simbolizar o “fruto proibido”. Na última estofe, tomado de ardente desejo, o eu lírico confessa: “e eu as devoro com a volúpia pagã / dos deuses”.

 

Em Mascavo (p. 45), as frutas surgem quase que numa imensa salada a partir da observação dos olhos do amado, que remetem ao doce da “glicose” e da “frutose”, além do “mel de urucu”.

 

E é no mel que repercutem algumas das mais intensas referências ao amor e ao desejo, como que demonstrando que é mesmo na sensação gustativa, no sabor, no toque da língua que residem as principais fontes de prazer para o eu lírico.

 

Se em certos momentos temos o doce enquanto alimento, como em Gula (p. 37), em outros encontramo-lo com referências claras ao próprio ato sexual. Assim é em Rapidinha (p. 65):

 

Zás!!!

E já escorria o mel

Sobre as pétalas molhadas da flor.

Depois, caiu sobre si mesma.

Numa lânguida e cortante depressão

Despetalou-se

 

Novamente encontramos no título um elemento fundamental para a compreensão do texto. Se sem ele a referência a uma relação sexual ficava muito distante (podendo apenas ser intuída a partir de trechos como “escorria o mel”, remetendo ao resultado final do ato, ou “caiu sobre si mesma”, enfatizando que a amada estava esgotada ao término da relação), está claro que sua presença elucida em muito a questão. No vocabulário popular o termo “rapidinha” é geralmente utilizado para se referir ao coito de curta duração. Logo, a partir da consideração do título tomamos conhecimento de uma sensibilidade lírica capaz de representar com tão belas imagens um ato tão cotidiano e banal (posto que sua configuração “rápida” pouco ou nada contribui para o aprofundamento de uma relação afetiva).

 

Neste caso, o mel de nada vale, posto que é fruto de algo já acabado. O “depois” indica claramente a diferença entre o momento anterior e a atual “depressão” da flor despetalada.

 

Seguindo ora renegado (Amargor, p. 50), ora amado (Distâncias, p. 26), o mel ainda marca presença em vários outros momentos da obra, inclusive quando se afasta da relação com o eu lírico e vai ser percebido na contemplação exterior, como em Permuta (p. 73), onde a imagem da cana (doce) logo faz o eu lírico pensar no suor (amargo) de quem a planta.

 

Mas Amora não é uma obra refém do amor e das sensações por ele despertadas. O olhar do eu lírico se dirige para as mais diferentes paisagens (Cuba, p. 47; O fado, p. 124) e, em certos poemas, inspira momentos de interessante extroversão (Embriaguez, p. 83). Há também o belo Folia de Zumbi (p. 53), onde em determinado momento a sonoridade vira aliada para retratar uma chaga da história do Brasil: “(...) Tambores de Palmares / Palmatórias, não! / Alegria, sim. / Atabaques. / Palmas das mãos (...)”.

 

Logo, seja cedendo aos atrozes apelos do amor, seja superando os limites de seu ser e lançando o olhar para o espaço ao seu redor ou para a própria poesia, Amora é um livro que evidencia uma singular percepção lírica e que, certamente, marca de forma satisfatória a estreia de Fidélia Cassandra no âmbito da poesia.

 

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Professor Weslley Barbosa