Este ensaio foi publicado inicialmente no meu
livro Ensaios de poesia paraibana (2014). A versão que se lerá abaixo foi
submetida a revisão e recebeu pequenas modificações.
“O jambo maduro”, a mulher que deseja, o pulsar da
vida escorrendo sobre o papel com a cor púrpura de um eu lírico instintivamente
feminino, o aroma penetrante como o néctar vertido da mais doce amora.
Sensualidade? Erotismo? Amor!
Fidélia Cassandra expõe todos esses matizes em seu
livro de estreia, Amora (2002), obra
carregada de um furor apaixonado e com um ecletismo admirável no que diz
respeito à forma dos textos, onde nos deparamos com tercetos, poemas mais
longos, letras de canções (uma outra dedicação de Fidélia é em relação à
música), etc.
Já em termos temáticos, percebemos que a obra tem
como principais recorrências os leitmotive
ligados ao amor, à paixão, à sensualidade, que não deixam de aparecer nem mesmo
quando o foco é a metalinguagem. Assim é que encontramos em Poética VI a poesia como “uma amante”
(p. 96) e em Poética XII como um
“beijo velado” (p. 102), sendo ambos textos da parte intitulada “Poéticas”.
Em “Além das cercas (aroma)”, primeira parte do
livro, a sensualidade pulsa em cada página, em cada texto. Das “infinitas
cascatas de gozo” (Ficção, p. 25),
onde os amantes se unem num caleidoscópico jogo metamórfico, ao “fluido rio
escarlate (...) que inunda as coxas” (Rio,
p. 29), onde a menstruação marca um erotismo forte e inusitado, os poemas são o
ambiente onde cores, sensações, formas e sabores, dão a tônica das relações
experimentadas da forma mais intensa pelo eu lírico.
O paladar parece ser o sentido mais estimulado,
seja na solitária relação com o próprio corpo, seja na comunhão com o corpo do
amado. As frutas estão presentes em vários textos, como em Pomo, onde lemos na primeira estrofe:
Meu amado me traz maçãs
Vestidas com o mais puro halo
Do pecado (p.28).
Há uma visível intertextualidade com a Bíblia, tanto no título (que além de
remeter à fruta, geralmente “carnosa”, pode ser perfeitamente associado ao pomo
de Adão e, por conseguinte, ao pecado original), quanto na própria presença da
maçã, geralmente utilizada para simbolizar o “fruto proibido”. Na última
estofe, tomado de ardente desejo, o eu lírico confessa: “e eu as devoro com a
volúpia pagã / dos deuses”.
Em Mascavo
(p. 45), as frutas surgem quase que numa imensa salada a partir da observação
dos olhos do amado, que remetem ao doce da “glicose” e da “frutose”, além do
“mel de urucu”.
E é no mel que repercutem algumas das mais intensas
referências ao amor e ao desejo, como que demonstrando que é mesmo na sensação
gustativa, no sabor, no toque da língua que residem as principais fontes de
prazer para o eu lírico.
Se em certos momentos temos o doce enquanto
alimento, como em Gula (p. 37), em
outros encontramo-lo com referências claras ao próprio ato sexual. Assim é em Rapidinha (p. 65):
Zás!!!
E já escorria o mel
Sobre as pétalas molhadas da flor.
Depois, caiu sobre si mesma.
Numa lânguida e cortante depressão
Despetalou-se
Novamente encontramos no título um elemento
fundamental para a compreensão do texto. Se sem ele a referência a uma relação
sexual ficava muito distante (podendo apenas ser intuída a partir de trechos
como “escorria o mel”, remetendo ao resultado final do ato, ou “caiu sobre si
mesma”, enfatizando que a amada estava esgotada ao término da relação), está
claro que sua presença elucida em muito a questão. No vocabulário popular o
termo “rapidinha” é geralmente utilizado para se referir ao coito de curta
duração. Logo, a partir da consideração do título tomamos conhecimento de uma
sensibilidade lírica capaz de representar com tão belas imagens um ato tão
cotidiano e banal (posto que sua configuração “rápida” pouco ou nada contribui
para o aprofundamento de uma relação afetiva).
Neste caso, o mel de nada vale, posto que é fruto
de algo já acabado. O “depois” indica claramente a diferença entre o momento
anterior e a atual “depressão” da flor despetalada.
Seguindo ora renegado (Amargor, p. 50), ora amado (Distâncias,
p. 26), o mel ainda marca presença em vários outros momentos da obra, inclusive
quando se afasta da relação com o eu lírico e vai ser percebido na contemplação
exterior, como em Permuta (p. 73),
onde a imagem da cana (doce) logo faz o eu lírico pensar no suor (amargo) de
quem a planta.
Mas Amora
não é uma obra refém do amor e das sensações por ele despertadas. O olhar do eu
lírico se dirige para as mais diferentes paisagens (Cuba, p. 47; O fado, p. 124)
e, em certos poemas, inspira momentos de interessante extroversão (Embriaguez, p. 83). Há também o belo Folia de Zumbi (p. 53), onde em
determinado momento a sonoridade vira aliada para retratar uma chaga da
história do Brasil: “(...) Tambores de Palmares / Palmatórias, não! / Alegria,
sim. / Atabaques. / Palmas das mãos (...)”.
Logo, seja cedendo aos atrozes apelos do amor, seja
superando os limites de seu ser e lançando o olhar para o espaço ao seu redor
ou para a própria poesia, Amora é um
livro que evidencia uma singular percepção lírica e que, certamente, marca de
forma satisfatória a estreia de Fidélia Cassandra no âmbito da poesia.
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Professor
Weslley Barbosa