Acordo. Uma sensação boa percorre meu corpo. Sinto-me
aconchegada, agradavelmente confortável sob o cobertor. Como de costume, não
abro logo os olhos, fico sentindo o ar preencher os meus pulmões, ouvindo os
primeiros sons da manhã e aproveitando esse estado de quase-sono tão agradável
em manhãs frias. Especialmente nestes dias, em que não há nada para fazer, a
melhor coisa do mundo é experimentar a sensação de acordar aos poucos, sentindo
repercutir em mim o pulsar da vida lá fora.
Logo me chega aos ouvidos o canto de um passarinho
e, mesmo que ainda meio inconsciente, parece que já o conheço muito bem. Aqui,
na casa de vovó, sempre há muitos passarinhos. Eles adoram as copas frondosas
das árvores do jardim. No nosso apartamento, na cidade grande, não há jardins
nem árvores frondosas. Há apenas um cacto, que mamãe cultiva num vasinho do
tamanho de uma xícara, na janela da cozinha. Aqui não, é sempre tudo tão lindo,
tão intenso, uma cantoria tão boa ao amanhecer. Passo o ano todo aguardando
ansiosa o período de férias, para aproveitar ao máximo os dias aqui com vovó.
Sempre que chego, é aquela festa. “Ó, Mariana, que
saudade! Me dá um abraço, minha querida. Meu Jesus Cristo, como essa menina
está grande. Cadê o beijo de vovó?”. Logo que guardo as minhas coisas, saio
para brincar no jardim. Quase sempre, as minhas primas vêm também, e é aquela
festa por dias e dias. Na hora do lanche, vovó nos prepara bolo ou tapioca, com
suco de frutas colhidas do pé ou um café quentinho e gostoso como só ela faz.
Por falar em café, já sinto o cheiro. Vovó acorda
bem cedinho, quando o sol sequer tem dado as caras ainda. Mal começa a manhã e
ela já está aguando as plantas, cuidando de suas flores. Depois, prepara nosso
café, põe a mesa, e vem nos acordar. No meu caso nem precisa, pois faço questão
de acordar o mais cedo possível e aproveitar cada minuto das férias com ela.
Quando chego à cozinha, ela me recebe com o melhor abraço do mundo, faz um
carinho na minha bochecha e reclama da demora das outras meninas, mas logo
releva: “férias são para isso mesmo, para perder as horas, dormir até matar
toda a vontade”.
Mas não quero levantar-me ainda. Está tão bom aqui,
de olhos fechados, ouvindo o passarinho cantar para mim. Ele certamente desceu
das árvores e está na minha janela. No nosso apartamento, o que me acorda
sempre é o despertador, lembrando-me da hora de ir para a escola. Quando saio
do quarto, mamãe e papai recebem-me com um beijo rápido, como rápida é mesmo a
vida, na correria do dia a dia. Saímos os três, eles para trabalhar, eu para
estudar. Aqui em vovó, parece que o tempo funciona diferente. Ninguém tem que
sair, nós acordamos para aproveitar o dia. Mas eu até gosto de estudar, o que
eu não gosto mesmo é do despertador. Bem que poderiam ser pássaros.
Não me lembro bem quando começou este costume de vir
passar duas semanas das férias aqui na casa de vovó. Parece mesmo que é assim
desde sempre. No dia de vir, mamãe e papai vêm trazer-me assim que acordamos e,
como a viagem é curta, logo chegamos. No caminho, fico observando a mudança da
paisagem, primeiro os edifícios e avenidas movimentadas, até a saída da nossa
cidade. Depois, uma sucessão de plantações, serras, fazendas cheias de animais
e, finalmente, a cidadezinha em que vovó mora.
Mamãe percebe minha alegria e ansiedade e brinca
dizendo que se eu pudesse, trocaria ela, meu pai e tudo mais para ficar aqui.
Não é verdade, eu gosto de morar com eles, mas é bom aquela sensação de passar
o ano todo na espera de chegar o dia de vir ficar com vovó. O dia da viagem é
sempre o mais alegre do ano e lembro que apenas uma vez eu vim aos prantos, com
um vazio tão grande no peito que parecia que iria cair no próprio abismo aberto
dentro de mim. Lembro de papai dirigindo com os olhos vermelhos, de mamãe com o
olhar perdido na paisagem, já sem lágrimas para derramar depois de tanto choro.
Lembro da tristeza que senti quando paramos o carro aqui na frente e eu olhei o
jardim, sabendo que poderia ser a última vez, que nunca mais minhas férias
teriam sentido, que... Meu Deus, vovó morreu!
Abro os olhos de repente. Ora, eu estou em casa! As
lágrimas escorrem pelo meu rosto deitado sobre a orelha esquerda e umedecem o
travesseiro. Que sensação ruim... Olho pela janela do apartamento e vejo que o
dia amanheceu nublado. Nada de árvores, só prédios. Ao meu lado, em nossa cama
de casal, meu marido ainda dorme. É sábado. Vou me recompondo, respiro fundo. Não
havia cheiro de café, mas, agora bem longínquo, misturado com buzinas e outros sons
da cidade em movimento, ainda posso distinguir o canto do pássaro. Levanto-me cambaleante,
chego à janela, não vejo nada pelo vidro. Abro, coloco a cabeça para fora e, lá
está. Sobre um fio, olhando para um lado e para o outro, o pássaro canta. E
chego a perceber em seu canto um chamado. Mas, no meio da cidade grande, o seu
chamado se perde. Ninguém o escuta, ninguém o nota, ninguém o atende. Cansado
de chamar, ele alça voo, e eu o acompanho com os olhos até se perder, até se dissipar...
até nunca mais!
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Professor Weslley Barbosa