29/12/2022

O PÁSSARO


Acordo. Uma sensação boa percorre meu corpo. Sinto-me aconchegada, agradavelmente confortável sob o cobertor. Como de costume, não abro logo os olhos, fico sentindo o ar preencher os meus pulmões, ouvindo os primeiros sons da manhã e aproveitando esse estado de quase-sono tão agradável em manhãs frias. Especialmente nestes dias, em que não há nada para fazer, a melhor coisa do mundo é experimentar a sensação de acordar aos poucos, sentindo repercutir em mim o pulsar da vida lá fora.

 

Logo me chega aos ouvidos o canto de um passarinho e, mesmo que ainda meio inconsciente, parece que já o conheço muito bem. Aqui, na casa de vovó, sempre há muitos passarinhos. Eles adoram as copas frondosas das árvores do jardim. No nosso apartamento, na cidade grande, não há jardins nem árvores frondosas. Há apenas um cacto, que mamãe cultiva num vasinho do tamanho de uma xícara, na janela da cozinha. Aqui não, é sempre tudo tão lindo, tão intenso, uma cantoria tão boa ao amanhecer. Passo o ano todo aguardando ansiosa o período de férias, para aproveitar ao máximo os dias aqui com vovó.

 

Sempre que chego, é aquela festa. “Ó, Mariana, que saudade! Me dá um abraço, minha querida. Meu Jesus Cristo, como essa menina está grande. Cadê o beijo de vovó?”. Logo que guardo as minhas coisas, saio para brincar no jardim. Quase sempre, as minhas primas vêm também, e é aquela festa por dias e dias. Na hora do lanche, vovó nos prepara bolo ou tapioca, com suco de frutas colhidas do pé ou um café quentinho e gostoso como só ela faz.

 

Por falar em café, já sinto o cheiro. Vovó acorda bem cedinho, quando o sol sequer tem dado as caras ainda. Mal começa a manhã e ela já está aguando as plantas, cuidando de suas flores. Depois, prepara nosso café, põe a mesa, e vem nos acordar. No meu caso nem precisa, pois faço questão de acordar o mais cedo possível e aproveitar cada minuto das férias com ela. Quando chego à cozinha, ela me recebe com o melhor abraço do mundo, faz um carinho na minha bochecha e reclama da demora das outras meninas, mas logo releva: “férias são para isso mesmo, para perder as horas, dormir até matar toda a vontade”.

 

Mas não quero levantar-me ainda. Está tão bom aqui, de olhos fechados, ouvindo o passarinho cantar para mim. Ele certamente desceu das árvores e está na minha janela. No nosso apartamento, o que me acorda sempre é o despertador, lembrando-me da hora de ir para a escola. Quando saio do quarto, mamãe e papai recebem-me com um beijo rápido, como rápida é mesmo a vida, na correria do dia a dia. Saímos os três, eles para trabalhar, eu para estudar. Aqui em vovó, parece que o tempo funciona diferente. Ninguém tem que sair, nós acordamos para aproveitar o dia. Mas eu até gosto de estudar, o que eu não gosto mesmo é do despertador. Bem que poderiam ser pássaros.

 

Não me lembro bem quando começou este costume de vir passar duas semanas das férias aqui na casa de vovó. Parece mesmo que é assim desde sempre. No dia de vir, mamãe e papai vêm trazer-me assim que acordamos e, como a viagem é curta, logo chegamos. No caminho, fico observando a mudança da paisagem, primeiro os edifícios e avenidas movimentadas, até a saída da nossa cidade. Depois, uma sucessão de plantações, serras, fazendas cheias de animais e, finalmente, a cidadezinha em que vovó mora.

 

Mamãe percebe minha alegria e ansiedade e brinca dizendo que se eu pudesse, trocaria ela, meu pai e tudo mais para ficar aqui. Não é verdade, eu gosto de morar com eles, mas é bom aquela sensação de passar o ano todo na espera de chegar o dia de vir ficar com vovó. O dia da viagem é sempre o mais alegre do ano e lembro que apenas uma vez eu vim aos prantos, com um vazio tão grande no peito que parecia que iria cair no próprio abismo aberto dentro de mim. Lembro de papai dirigindo com os olhos vermelhos, de mamãe com o olhar perdido na paisagem, já sem lágrimas para derramar depois de tanto choro. Lembro da tristeza que senti quando paramos o carro aqui na frente e eu olhei o jardim, sabendo que poderia ser a última vez, que nunca mais minhas férias teriam sentido, que... Meu Deus, vovó morreu!

 

Abro os olhos de repente. Ora, eu estou em casa! As lágrimas escorrem pelo meu rosto deitado sobre a orelha esquerda e umedecem o travesseiro. Que sensação ruim... Olho pela janela do apartamento e vejo que o dia amanheceu nublado. Nada de árvores, só prédios. Ao meu lado, em nossa cama de casal, meu marido ainda dorme. É sábado. Vou me recompondo, respiro fundo. Não havia cheiro de café, mas, agora bem longínquo, misturado com buzinas e outros sons da cidade em movimento, ainda posso distinguir o canto do pássaro. Levanto-me cambaleante, chego à janela, não vejo nada pelo vidro. Abro, coloco a cabeça para fora e, lá está. Sobre um fio, olhando para um lado e para o outro, o pássaro canta. E chego a perceber em seu canto um chamado. Mas, no meio da cidade grande, o seu chamado se perde. Ninguém o escuta, ninguém o nota, ninguém o atende. Cansado de chamar, ele alça voo, e eu o acompanho com os olhos até se perder, até se dissipar... até nunca mais!

 

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Professor Weslley Barbosa