A obra de Felix Araújo pode ser definida como
precoce e resumida, o que se explica pelo fato de o autor ter sido assassinado
ainda muito jovem, aos 31 anos. Tão resumida que coube em um único volume de
duzentas e cinquenta páginas, onde se agregam tanto os seus poemas quanto
alguns textos em prosa. Trata-se de Obra
poética, lançado pela editora da UFPB em 1977 e reeditado pelo selo Latus,
da editora da UEPB em 2022.
O livro, como bem foi destacado no prefácio por
Elpídio de Almeida, encerra composições “escritas quase todas na adolescência”,
como o longo poema Tamar (formado da
união de pequenos textos em prosa poética), escrito quando Araújo contava
apenas 18 anos, e os textos de Dor,
que constitui a segunda parte da obra em questão, produzidos quando o poeta
contava vinte anos.
Assim, não é de estranhar que se encontrem ao longo
do livro alguns momentos de ingenuidade e mesmo de certa imperícia estética.
Todavia, pelo mesmo motivo, não podem passar despercebidas as belas imagens e
as bem construídas metáforas que o jovem poeta conseguiu criar em vários
momentos de sua obra.
As paisagens regionais convivem nos seus poemas com
elementos típicos de outras geografias, como, por exemplo, a neve, símbolo de
pureza para o poeta (como em Dever,
p. 100) e a cidade de Stalingrado e sua resistência, talvez devido às
impressões causadas durante suas experiências de expedicionário na Segunda
Guerra Mundial (Elogio da cidade de
Stalingrado, p. 185).
Mas, já na busca de especificar o foco deste
ensaio, devo destacar que dentre os temas que mais se repetem ao longo de toda
a Obra poética, sobressai a presença
da religiosidade e o olhar constantemente voltado para a transcendência. O
catolicismo emana de todo o livro mostrando que o poeta fazia da poesia, que
não deixa de ser uma confissão dos sentimentos mais subjetivos, o espaço também
de confissão do cristão que precisava conversar com Deus. Vejamos as estrofes
finais de Renúncia (p. 172):
Eu
não quero, Senhor, a pedra de Ferrara,
Para
nela esculpir a estátua ardente e rara,
Desta
angústia imortal e desta grande dor.
Quero
um pouco que é tudo e um nada infinito:
-
A certeza de Deus no meu viver aflito,
-
Uns resquícios de fé e um pedaço de amor!
O eu lírico despe-se de toda cobiça. Até mesmo
aquele desejo, tão comum na maioria dos artistas, de produzir uma obra
significativa, nele já não encontra respaldo. O eu lírico de Araújo tem
consciência da efemeridade das glórias terrenas e das substâncias do universo
palpável (na estrofe anterior afirma: “Passa o esplendor. A graça. A fortaleza.
As leis. / Morrem astros”) e por isso abdica de qualquer intento relacionado à
matéria. Em contrapartida, deseja aquilo que, sob sua ótica, constitui “um
pouco”, porém um pouco infinito: a presença de Deus, a fé e o amor.
Outro momento de diálogo com Deus se verifica em Dever (p. 100), onde, após enumerar
algumas práticas que acreditava que deveria seguir, o eu lírico nos diz:
Eu
devia ser puro:
Até
Deus, Calmo e leve,
Caminhar
sem delírios,
A
alma cheia de neve
De
perdões e de lírios.
O ideal de seguir práticas divinas é perseguido em
outros momentos do poema. O eu lírico projeta para si objetivos muito altos, o
que talvez acabe por ser também um fator decisivo nos momentos de frustração
que mostraremos mais a frente. Destaque-se a ideia de pureza que ele possui,
associada a elementos de cor branca, como a neve (o que já foi citado no início
deste ensaio) e o lírio.
Em muitos momentos, há a certeza do amparo, da
presença da força divina a acompanhar-lhe os passos. Nestes momentos, Deus
surge absoluto e ao mesmo tempo humilde, responsável por um enorme rebanho, mas
cuidando para que nenhum daqueles que estão sob seus cuidados se desgarre:
Norteando
as barcas, pastoreando os gados,
No
meu império de milhões de tendas,
O
velho rei de passos apressados
Passa
em meu ser sob um clarão de rendas.
(Este rei caminha na minha vida, p. 97)
Desde o início do poema o eu lírico se vê
acompanhado de um “rei velhinho”, ainda inominado ou sem identificação. A
figura do velhinho, trazendo consigo toda uma significação ligada à
fragilidade, mas também à experiência, à simplicidade e à sabedoria, ao comando
e à paternidade, é potencializada pelo posto real que ocupa, levando-nos a
perceber que ele governa, ele tem poderes, ele tem sua força. Uma força sem
abusos: ele é um “velhinho”, com todo o afeto e singeleza que o diminutivo
traz. E mais: não obstante ser velhinho, ele tem os “passos apressados”, é
decidido e não perde tempo no comando e no cuidado com os seus. E só na última
estrofe é que ele arrisca atribuir-lhe a identificação que já adiantamos acima:
“é aquele que os homens chamam – Deus!” (p. 97).
A busca por Deus, pelo transcendente, parece ser
potencializada pelo sofrimento do poeta diante do estado de saúde de seu pai,
que via perecer a cada dia, com o agravamento da doença que lhe acometera.
Assim temos:
Noites
de angústia! Noites mal-dormidas!
E
o sono que se vai como folhas caídas.
Nesse
quarto vizinho está meu pai:
-
Nosso Senhor devagarinho cai
Desfeito
em rosas no seu sono...
(Poema de angústia e de esperança, p.
106)
À medida em que a dor toma dimensões incontornáveis
no âmbito do humano, parece restar no eu lírico a única esperança de que os
seres divinos (Deus, Nossa Senhora – citada no mesmo poema e em outros, como Religião, p. 112) tragam para a família
o alento de que ela tanto precisa.
Todavia, não é apenas positiva e marcada pela
esperança a relação do eu lírico que circula nas páginas de Obra poética com o divino. Há momentos
em que o jovem eu lírico se vê angustiado, sem rumo, sem o controle de seu
próprio corpo, que acaba se tornando uma ameaça para ele mesmo: “Há no meu
corpo venenosas setas, / Fontes do Mal, abismos de desejos” (Meu corpo, p. 90). E não demora muito
para a força do divino em sua vida mostrar alguma fragilidade: “Meu Coração,
este país medonho, / Em que Deus periclita e o Inferno avança” (Meu coração, p. 88). É que, estando em
crise o eu lírico, tudo o mais entra em crise, inclusive a certeza da proteção
divina.
É assim que ele confessa toda a sua indignação num
dos momentos de menor inspiração poética:
O
Senhor está fora,
Deus
está viajando,
Há
muito tempo passou,
Foi
à casa do Homem Rico,
À
terra do Homem Feliz...
Como
escutar o que diz
Um
pobrezinho – que eu sou?
(Canto do homem esquecido, p. 99)
Predominam nestas estrofes muito mais a frustração
ocasionada pelo sentimento de abandono e a confissão de sua desilusão com a sua
condição do que, propriamente, algum procedimento estético mais bem trabalhado
(até mesmo as metáforas, vistas em outros momentos, como em “os olhos
mergulhados no céu” e “devagarinho cai / Desfeito em rosas no seu sono”,
anteriormente citados, estão ausentes neste caso). O que há é o sentimento de
que Deus o abandonou, que foi dedicar-se a dar mais felicidade a quem já a tem e
mais posses a quem já muito possui. Parece mesmo que, para o eu lírico de
Araújo, a presença do divino é um imperativo tão decisivo para a constituição
de sua consciência que, diante da ideia de que fora abandonado, ele
simplesmente se desestrutura, tanto emocionalmente quanto artisticamente.
Muitas podem ser as causas para tal crise. Talvez
fruto da consciência jovem, marcada, como realmente costuma ser, por altos e
baixos, por conflitos e incertezas. Além disso, confessa o eu lírico, houve
também a influência do pensamento científico: “Alegre vislumbrei / O mito da
Ciência aos meus olhos passar” (Angústia,
p. 173). Porém, logo a própria ciência vai lhe mostrar os seus limites e, sem
qualquer porto seguro em que se ampare, ele afirma:
Mas
a Ciência é vã: luz que brilha e se apaga...
E
se foi como a fé, numa tristonha vaga,
Para
o mar da Descrença, o negro mar Incerto...
Beduíno
infeliz, mal me firmo de pé,
Vendo
fugir do céu, hoje triste e deserto,
Como
Spinosa, a Ciência; e com Jesus, a Fé!... (p. 173)
Todavia, não se pense que há na obra uma gradação,
partindo-se de um momento de fé e confiança extrema no divino para um momento
de crise e descrença. O caminho aqui traçado buscou apenas mostrar as duas
facetas de forma separada. Tanto o é que, após o referido Angústia, temos a presença de poemas que voltam a repercutir esta
crise (como é o caso de Trilogia, p.
178, onde se diz: “eis o que vale esta vida / quando perdemos a Fé!”), além de
outros textos que demonstram uma postura de reconciliação com a fé (como ocorre
em Meu pensamento, p. 181, onde este
último “sobe, e ascende, e voa aos pés de Deus”).
O passeio aqui empreendido pela obra de Félix
Araújo nem de longe constitui um panorama geral de sua produção. Apenas tocamos
num de seus pontos mais significativos. Outros temas existem e merecem atenção.
Há poemas de grande beleza, como os dois que versam sobre o rio Taperoá (O Taperoá seco, sob o luar..., p. 170; O Taperoá cheio, dentro da noite, p.
171) e o Poema da cidade interior
(p. 188). Há a prosa, há o famoso Tamar...
Obra poética se constitui numa
coletânea que merece, ainda, a devida atenção.
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Professor Weslley Barbosa