(Este texto foi
originalmente publicado em 2011, na revista Blecaute. Em 2014, revisei-o
e ampliei-o, a fim de publicá-lo em meu livro Ensaios de poesia paraibana.
É esta segunda versão, revisada, que segue abaixo)
A poesia
do paraibano José Antonio Assunção é, sem dúvidas, uma das mais ricas da
literatura de nosso estado. Nome presente nos meios culturais desde a década de
1970 (tendo participado do grupo de jovens artistas que deram vida à revista Garatuja), Assunção, antes mesmo de
publicar sua primeira obra, já recebia uma significativa quantidade de leituras
e análises. Com o passar dos anos, a fortuna crítica em torno do autor cada vez
mais se adensou, com a contribuição de vários nomes significativos de nossa
crítica (Elizabeth Marinheiro, José Mário da Silva, Antônio Morais de Carvalho,
Hildeberto Barbosa e Milton Marques Júnior são alguns exemplos).
Compreendo,
portanto, que não assume simples tarefa aquele que busque, atualmente,
estabelecer um olhar inédito acerca da obra do poeta em questão. Entretanto,
aceito humildemente o desafio, não no intuito de lançar um grito isolado e
pretensioso em relação às demais vozes que a analisaram, mas sim assumindo o
papel daquele que, tendo colhido dos mestres acima, não se priva da
oportunidade de também abrir, para possíveis interessados, mais uma porta de
entrada para o estudo da rica poesia de Assunção.
Apesar de
ter publicado pouco – O câncer no pêssego
(Ideia, 1992) e A trapaça da rosa
(Manufatura, 1998), além de possuir outra obra ainda inédita: A casa do ser – José Antonio Assunção
mostra em seus textos os traços marcantes de uma cosmovisão bem definida e uma
maturidade poética inquestionável. Deixando transbordar dos seus versos as
vozes de um Pessoa, um Drummond, um João Cabral, um Camões, um Borges, ou mesmo
os clássicos gregos, a exemplo de Homero, o poeta paraibano não se alheia da
imprescindível tarefa (para aqueles que se mostrem dispostos a produzir
relevante e verdadeira poesia) de lançar um olhar subjetivo e transfigurador
sobre a realidade, subjetividade esta que aqui se manifesta de maneira ímpar em
nossas letras.
Plural
nos leitmotive com os quais produz
seus poemas, Assunção contempla desde o mais universal dos temas, o amor
(veja-se a primeira parte dO câncer no
pêssego, “Nas crinas da paixão”), até a morte (a segunda parte da mesma
obra, intitulada “O exercício de Sísifo”, é um exemplo, além, como bem lembra
Hildeberto Barbosa em Os labirintos do
discurso, de toda a obra A Casa do
Ser), passando também pela metalinguagem (última parte dO Câncer, “Outro Exercício de Sísifo”, o
exemplifica) e até pelo erotismo (como se vê no poema Entre pérola e ostra, na primeira parte da referida obra).
Um leitmotiv, no entanto, chamou-me especial
atenção, quando da leitura de O câncer no
pêssego: o da “busca”. Assim, a partir de agora trilharei um caminho que possa
esboçar um quadro acerca do modo como essa busca se dá na referida obra, a
partir de três momentos diferentes, de acordo com as três partes do livro: no
amor (primeira parte), no próprio “eu” do poeta (segunda parte) e no fazer
poético (terceira parte). Em todos esses momentos o mito está presente, mas
está presente ressignificado, portando a dura capacidade de amplificar as
angústias do eu lírico.
Não
erraria aquele que definisse o ser humano como o ser que está em constante
busca. Desde a nossa origem procuramos algo: respostas para nossa existência,
avanços tecnológicos, novas terras, novos mundos, novas vidas. E é a busca por
respostas que constitui a principal razão de ser do mito.
Segundo
Mircea Eliade, em seu Mito e realidade,
“o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir (...) é sempre, portanto, a narrativa de uma criação” (ELIADE,
2011, p. 11). Logo, o mito surge como resposta à indagação sobre a origem de um
fato. Trata das ações de “Entes Sobrenaturais”, conta-nos sobre a sua
existência e/ou sobre seu fim. Mais à frente, é ainda Eliade quem afirma: “os
mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado
(ou do ‘sobrenatural’) no Mundo”. O fato de trazer as “irrupções do
sobrenatural no mundo” é algo fundamental na compreensão do mito, que muitas
vezes mostra tais seres em interação direta com os seres humanos, afetando
nossa vida e por nós, também (em alguns casos), sendo afetados.
O mito
grego, por exemplo, põe tão diretamente o sobrenatural e o humano em
convivência que é possível vermos a existência de seres híbridos, frutos do
relacionamento entre deuses e mortais: os semideuses. Há aqueles personagens
que são considerados heróis, há aqueles que constantemente ludibriam os
deuses...
O mito
traz consigo o caráter de projeção dos anseios humanos. É fruto do desejo de
respostas, da necessidade de dar explicações. É, principalmente, a tentativa de
alçar patamares mais altos, onde o ser humano consegue interagir com o sagrado,
afetá-lo, modificá-lo. Ao atribuir ao Ente Sobrenatural algumas das
características humanas, o homem quer não apenas trazer o divino para junto de
si, mas também acreditar que, de certa forma, a fronteira não é tão espessa e
ele não é tão limitado em relação aos imortais. A existência do mito chega
mesmo a ser uma espécie de refúgio para aqueles que o seguem, que nele
acreditam.
Mas, e
quando o mito, ao contrário de servir de refúgio apenas expõe nossas
fragilidades? Que fazer quando reconhecemos no mito a inutilidade de nossas
buscas? Como agir diante de Sísifo que, com seu eterno ofício sem valia, apenas
nos faz enxergar que não há luz nem fim, no atro túnel em que nos lançamos?
José
Antonio Assunção também se dá conta dessa trágica sina. Mas antes, lança-se,
desprendido, arriscando-se no labirinto do amor. Mesmo ciente da fragilidade do
sentimento, o eu lírico doa-se, diferente do que fizera Ulisses, “num barco sem
mastros / e tímpanos bem abertos”, ao canto das sereias (O canto das sereias, p. 13).
Eis aí o
tema e o tom de “Nas crinas da paixão”, primeira parte da obra. De peito aberto
o eu lírico se lança na “primeira busca” do livro. Busca-se o amor. Diríamos mais
ainda: busca-se o melhor modo de amar – “como fazer um teu poema / sem trair
teu corpo, / esse teu cheiro de amêndoa?” (Teu
corpo, p. 19). Dessa intensa busca por satisfação, por realização amorosa,
surge o desejo, materializado em poemas portadores de um perceptível caráter
erótico. Os versos abaixo, retirados de Entre
beijo e bocas (ranhuras), podem exemplificar isso:
(I)
Há mais que
pérolas
na ostra que
apertas
entre as coxas;
há bem mais que
pérolas
no céu crustáceo
dessa ostra.
(II)
Entre teu sexo e
tua boca,
distância
nenhuma:
o tempo de saber
teu corpo
na ponta da
língua. (p. 24)
Belíssimos versos em que o desejo e a
paixão assumem o primeiro plano. É a celebração do corpo, sem pudor, sem
limites. O erotismo aflora e a conjunção dos amantes que se tocam é tamanha que
já não há distâncias, há apenas o desejo da saciedade do corpo: “navega-me, amor,
navega-me” (p. 25). O eu lírico busca tal saciedade sem saber que, depois, é o
vazio: “é só depois do amor / que o amor é um abismo” (Canto cruel, p. 32). Entra-se assim num jogo de altos e baixos, em
que ora impera a mansidão e a fluidez do amor, ora o fogo e o espasmo da
paixão. Entregando-se de corpo e alma a um sentimento que mescla pluma e pedra,
flor e espinho, não resta ao poeta uma alternativa que não sofrer as
consequências de sua entrega, expressa, como dissemos acima, no poema O canto das sereias.
Aos
poucos o eu lírico vai se dando conta das agruras do amor – “contradição de mar
/ e mangue; / convulsão de mitos / em céu de pântano” (Entre mar e mangue, p. 27) – e de quanto são traiçoeiras as amadas
(Bacante, p. 31). Sem se enganar em
nenhum momento, mas também não buscando exilar-se do sentimento, o eu lírico
segue amando, embora demonstre não mais esperar, nos laços amorosos, o
preenchimento das lacunas de seu ser.
Na
segunda parte (“O exercício de Sísifo”) impera a busca pelo autoconhecimento:
“agora eu me expurgo de mim mesmo / em busca do outro em que me encarcero” (O doublé, p. 41). É aí que o mito ganha
mais força. É aí que o poeta se reconhece Sísifo, em eterna e vã labuta.
Veja-se um trecho do poema O espelho de
Sísifo (p. 45):
Busca o homem o
indizível
Deus que o duplo
enigma lhe desvende,
esse: o da vida e
o seu anverso.
Serei o espesso
espelho
de Sísifo em seu
um outro espelho, ou
me perderá para
sempre
o pó do tédio
sobre o tempo?
(...)
O homem
busca desvendar o enigma da vida para poder ver a si mesmo desvendado. O eu
lírico que não se realizara totalmente no amor, conforme se viu acima, quando
tratamos da primeira parte do livro, tenta achar em si as respostas de que
necessita: “As minhas arestas, eis meu desafio. / Fio por fio vou me
destecendo, / e onde mais cedo mais me artimanho. / Quanto de mim é diamante ou
blefe?” (Arestas, p. 43).
Novamente,
no entanto, a busca é vã. Novamente não logra êxito o eu lírico, aumentando
ainda mais seu sentimento de incapacidade diante do mundo, da vida e de si
mesmo. Daí a identificação com Sísifo, figura constante em todo o livro. Tal
qual o mito grego que se via obrigado a, por castigo dos deuses, empurrar uma
pedra para o topo de uma montanha e, tendo chegado enfim próximo de concluir a
tarefa, a pedra rola novamente morro abaixo, fazendo-o recomeçar, o poeta
reconhece a inutilidade de si, de seus atos, de suas buscas. Compreendemos
ainda mais a dura sina de ambos quando percebemos que há, nos dois, a noção da
inutilidade. Eles sabem que seu trabalho/busca é inútil. O poema O exercício de Sísifo (p. 50), dá-nos
uma exata noção disso: “és todo Sísifo e porque Sísifo, / jamais escalarás o
cume de teu ser”.
Não encontrando em si mesmo as
respostas que busca, o eu lírico parece culpar o meio, o ambiente que o cerca,
pelas suas angústias. Provavelmente por isso, em alguns poemas desta parte do
livro, encontremos a presença constante de outras geografias. Passa-se a uma
busca pelo novo, o exótico, como forma, talvez, de encontrar algo que o
complete: “nunca te amaram Europas, Orientes / com seus feéricos paços e
Sherazades (...) nunca um exotismo, sequer um Saara / que te furtasse ao sempre
périplo / de teus mesmos tristes páramos” (O
acorrentado, p. 53). O clima persiste em outros poemas, como Paris-Texas (p. 58) e Veneza (p. 59). No primeiro, inclusive,
já percebendo esse artifício também como algo inútil, apresenta dois dos mais
belos versos do livro: “aos olhos de um homem em crise / toda geografia é o
mesmo acidente”. Homem em crise, o eu lírico de Assunção se pôs em busca de
novas geografias, numa tentativa de fuga, de evasão. Todavia, parece perceber,
em certo momento, que essas geografias apenas lhe proporcionariam novos
acidentes, não aqueles topográficos, geológicos, mas os acidentes frutos do
olhar do poeta, já “fatigado”, como diria Drummond, por toda uma vida de
percalços.
A “sísifa busca” de Assunção, todavia,
não cessa: ao contrário, ganha novos matizes, recheados, como não poderia
deixar de ser, com a mais bela poesia, conforme acontece com o poema Natal, 1987 (p. 67). Aqui, o eu lírico
já “menino antigo”, relembra o gesto perdido no tempo de vasculhar os sapatos
na manhã de Natal. A busca, que normalmente deveria resultar em um sorriso
alegre diante do presente, não tem resultado diferente das demais, já aqui
narradas: o eu lírico, teimoso, insistente e, diríamos, disposto a assumir
mesmo para sua vida o duro “ofício de Sísifo”, “suporta o presente”, mas o
presente de sua vida, esse atual e angustiante momento de sua vida. O futuro? O
último poema desta parte do livro responde, em tom meio que apocalíptico: “além
de mim / (e do escuro que me veste). / nada. / nem mesmo um gato” (Soledade, p. 68).
A terceira e última parte do livro
(“Outro exercício de Sísifo”) trata talvez da maior busca de todas: a busca da
poesia. Predominantemente metalinguístico este momento da obra expressa o
trabalho não apenas deste, mas de todos os poetas, que também se assumem
Sísifos, na eterna tarefa (também “vã”, novamente citando Drummond) de lutar
com as palavras.
O propósito do poeta agora é, não
encontrando as desejadas respostas no amor ou em si mesmo, ao menos, conseguir
se expressar, confessar-se ao mundo, talvez na esperança de encontrar leitores
que com ele se identifiquem, que também se assumam eternos carregadores de
pedras: “o que quer o poeta, / senão ser lido? / ser lido e amado / por seu
garimpo” (Grafito, p. 72).
Assunção compara o fazer poético com
um trabalho, um duro trabalho de avanços e retornos, de usos e reusos (A pedra lavrada, p. 76), continuando,
assim, na sua identificação com a figura de Sísifo. Fazendo do mito adjetivo (O sísifo silêncio, p. 81), o poeta
elenca alguns dos elementos com os quais seriam feitos os poemas: “de tempo e
palavra”, “do não”, do próprio “enleio de Sísifo”, “do rum das amadas” e do
“sísifo silêncio”.
Mas, teria o poeta, ao escolher como
terceira e última grande busca a própria poesia, conseguido enfim encontrar as
respostas que desejava? Será que este eu lírico clivado de angústias poderia,
no fazer poético, encontrar um pacífico ancoradouro? O próprio poeta responde a esta pergunta, nos
dois últimos poemas. Primeiro em Duplo
duelo (p. 87), onde compara a palavra a um revólver, que precise ser
armado, apontado e também, lógico, polido, limpo por dentro, ao passo que é
áspero por fora. Porém, no momento do confronto, no instante do bang (como diria Antonio Morais de Carvalho
em seu poema Pensação), a palavra
vez por outra encalha, sem conseguir ser disparada pela língua falha
(revisitando aqui, inclusive, Bilac e Augusto dos Anjos). Por fim, em (Desfecho ou tradução, p.89), o poeta se
confessa, pela terceira vez, derrotado:
Nada
me ocupa mais que a palavra
E
toda palavra me culpa.
Nada
me atrai mais que a palavra
E
toda palavra me trai.
O conflito é aparente. A palavra que o
“ocupa”, que constitui sua dedicação cotidiana, é também aquela que o “culpa”,
que o acusa (pelo quê?). Atraente ao poeta, sedutora, talvez o deixando refém
de seus encantos, a palavra é traiçoeira, traidora. E talvez o maior símbolo da
traição da palavra, para o poeta, seja o fato de ela jamais assumir os
significados que ele pretende.
No plano da microestrutura, os
elementos linguísticos utilizados apenas reforçam a constituição de leitmotive ligados à busca. Incontáveis
são as vezes em que são utilizados elementos que remetem à pergunta, à dúvida:
pronomes interrogativos (“Qual o suporte do pacto amoroso?” – p. 27) e o
próprio sinal de interrogação (“onde guardavas, então, / essa líquida reserva?”
– p. 76) são exemplos. Dois pontos (“eis o estoico mundo: / geografia do tédio”
– p. 63), apostos, hifens, surgem com o objetivo de trazerem consigo algumas
respostas, que logo são demonstradas ilusórias pelos advérbios de negação
(“nunca te amou o inelutável” – p. 53) e as conjunções adversativas (“mas,
não:” – p. 30). Já os verbos, majoritariamente no presente (“busca o homem o
indizível” – p. 45), atestam uma consciência que, tentando superar o passado e
sabendo inútil sonhar o futuro, já sabido sombrio, apenas vive o presente,
tentando se reerguer enquanto espera a próxima queda (“Agora eu me expurgo de
mim mesmo” – p. 41). Já os adjetivos refletem o quão duro e obscuro é o destino
do poeta (“pesadas”, “perdido”, “férrea”, “inútil”, além da própria adjetivação
de Sísifo – “sísifo silêncio”).
Enfim, foi trilhado aqui mais um
caminho rumo à fértil seara da poesia de José Antônio Assunção. O percurso analítico,
dividido, conforme o livro, em três partes, não indica uma rígida divisão de
temas na obra. Ao contrário, os três principais temas que encontramos apenas
são mais recorrentes em determinado momento, mas não deixam de perpassar toda a
obra, assim como a recorrência ao mito. Espero ter dado mais uma contribuição,
embora modesta, não apenas para a fortuna crítica sobre o autor, mas também
para a divulgação de sua obra para as novas gerações de leitores e estudantes.
É preciso que adotemos, também, o ofício de Sísifo: buscando e rebuscando,
incontáveis vezes, adentrar o reino da poesia, de que Assunção é bravo
guardião, ainda que, assim como acontece com este poeta em Duplo duelo, não saibamos, satisfatoriamente, engatilhar a arma.
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Professor
Weslley Barbosa