29/07/2022

O MÍTICO OFÍCIO DE ASSUNÇÃO


(Este texto foi originalmente publicado em 2011, na revista Blecaute. Em 2014, revisei-o e ampliei-o, a fim de publicá-lo em meu livro Ensaios de poesia paraibana. É esta segunda versão, revisada, que segue abaixo)

  

A poesia do paraibano José Antonio Assunção é, sem dúvidas, uma das mais ricas da literatura de nosso estado. Nome presente nos meios culturais desde a década de 1970 (tendo participado do grupo de jovens artistas que deram vida à revista Garatuja), Assunção, antes mesmo de publicar sua primeira obra, já recebia uma significativa quantidade de leituras e análises. Com o passar dos anos, a fortuna crítica em torno do autor cada vez mais se adensou, com a contribuição de vários nomes significativos de nossa crítica (Elizabeth Marinheiro, José Mário da Silva, Antônio Morais de Carvalho, Hildeberto Barbosa e Milton Marques Júnior são alguns exemplos).

 

Compreendo, portanto, que não assume simples tarefa aquele que busque, atualmente, estabelecer um olhar inédito acerca da obra do poeta em questão. Entretanto, aceito humildemente o desafio, não no intuito de lançar um grito isolado e pretensioso em relação às demais vozes que a analisaram, mas sim assumindo o papel daquele que, tendo colhido dos mestres acima, não se priva da oportunidade de também abrir, para possíveis interessados, mais uma porta de entrada para o estudo da rica poesia de Assunção.

 

Apesar de ter publicado pouco – O câncer no pêssego (Ideia, 1992) e A trapaça da rosa (Manufatura, 1998), além de possuir outra obra ainda inédita: A casa do ser – José Antonio Assunção mostra em seus textos os traços marcantes de uma cosmovisão bem definida e uma maturidade poética inquestionável. Deixando transbordar dos seus versos as vozes de um Pessoa, um Drummond, um João Cabral, um Camões, um Borges, ou mesmo os clássicos gregos, a exemplo de Homero, o poeta paraibano não se alheia da imprescindível tarefa (para aqueles que se mostrem dispostos a produzir relevante e verdadeira poesia) de lançar um olhar subjetivo e transfigurador sobre a realidade, subjetividade esta que aqui se manifesta de maneira ímpar em nossas letras.

 

Plural nos leitmotive com os quais produz seus poemas, Assunção contempla desde o mais universal dos temas, o amor (veja-se a primeira parte dO câncer no pêssego, “Nas crinas da paixão”), até a morte (a segunda parte da mesma obra, intitulada “O exercício de Sísifo”, é um exemplo, além, como bem lembra Hildeberto Barbosa em Os labirintos do discurso, de toda a obra A Casa do Ser), passando também pela metalinguagem (última parte dO Câncer, “Outro Exercício de Sísifo”, o exemplifica) e até pelo erotismo (como se vê no poema Entre pérola e ostra, na primeira parte da referida obra).

 

Um leitmotiv, no entanto, chamou-me especial atenção, quando da leitura de O câncer no pêssego: o da “busca”. Assim, a partir de agora trilharei um caminho que possa esboçar um quadro acerca do modo como essa busca se dá na referida obra, a partir de três momentos diferentes, de acordo com as três partes do livro: no amor (primeira parte), no próprio “eu” do poeta (segunda parte) e no fazer poético (terceira parte). Em todos esses momentos o mito está presente, mas está presente ressignificado, portando a dura capacidade de amplificar as angústias do eu lírico.

 

Não erraria aquele que definisse o ser humano como o ser que está em constante busca. Desde a nossa origem procuramos algo: respostas para nossa existência, avanços tecnológicos, novas terras, novos mundos, novas vidas. E é a busca por respostas que constitui a principal razão de ser do mito.


         

Segundo Mircea Eliade, em seu Mito e realidade, “o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir (...) é sempre, portanto, a narrativa de uma criação” (ELIADE, 2011, p. 11). Logo, o mito surge como resposta à indagação sobre a origem de um fato. Trata das ações de “Entes Sobrenaturais”, conta-nos sobre a sua existência e/ou sobre seu fim. Mais à frente, é ainda Eliade quem afirma: “os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo”. O fato de trazer as “irrupções do sobrenatural no mundo” é algo fundamental na compreensão do mito, que muitas vezes mostra tais seres em interação direta com os seres humanos, afetando nossa vida e por nós, também (em alguns casos), sendo afetados.

 

O mito grego, por exemplo, põe tão diretamente o sobrenatural e o humano em convivência que é possível vermos a existência de seres híbridos, frutos do relacionamento entre deuses e mortais: os semideuses. Há aqueles personagens que são considerados heróis, há aqueles que constantemente ludibriam os deuses...

 

O mito traz consigo o caráter de projeção dos anseios humanos. É fruto do desejo de respostas, da necessidade de dar explicações. É, principalmente, a tentativa de alçar patamares mais altos, onde o ser humano consegue interagir com o sagrado, afetá-lo, modificá-lo. Ao atribuir ao Ente Sobrenatural algumas das características humanas, o homem quer não apenas trazer o divino para junto de si, mas também acreditar que, de certa forma, a fronteira não é tão espessa e ele não é tão limitado em relação aos imortais. A existência do mito chega mesmo a ser uma espécie de refúgio para aqueles que o seguem, que nele acreditam.

 

Mas, e quando o mito, ao contrário de servir de refúgio apenas expõe nossas fragilidades? Que fazer quando reconhecemos no mito a inutilidade de nossas buscas? Como agir diante de Sísifo que, com seu eterno ofício sem valia, apenas nos faz enxergar que não há luz nem fim, no atro túnel em que nos lançamos?

         

José Antonio Assunção também se dá conta dessa trágica sina. Mas antes, lança-se, desprendido, arriscando-se no labirinto do amor. Mesmo ciente da fragilidade do sentimento, o eu lírico doa-se, diferente do que fizera Ulisses, “num barco sem mastros / e tímpanos bem abertos”, ao canto das sereias (O canto das sereias, p. 13).

 

Eis aí o tema e o tom de “Nas crinas da paixão”, primeira parte da obra. De peito aberto o eu lírico se lança na “primeira busca” do livro. Busca-se o amor. Diríamos mais ainda: busca-se o melhor modo de amar – “como fazer um teu poema / sem trair teu corpo, / esse teu cheiro de amêndoa?” (Teu corpo, p. 19). Dessa intensa busca por satisfação, por realização amorosa, surge o desejo, materializado em poemas portadores de um perceptível caráter erótico. Os versos abaixo, retirados de Entre beijo e bocas (ranhuras), podem exemplificar isso:

 

(I)

 

Há mais que pérolas

na ostra que apertas

entre as coxas;

há bem mais que pérolas

no céu crustáceo

dessa ostra.

 

(II)

 

Entre teu sexo e tua boca,

distância nenhuma:

o tempo de saber teu corpo

na ponta da língua. (p. 24)

 

          Belíssimos versos em que o desejo e a paixão assumem o primeiro plano. É a celebração do corpo, sem pudor, sem limites. O erotismo aflora e a conjunção dos amantes que se tocam é tamanha que já não há distâncias, há apenas o desejo da saciedade do corpo: “navega-me, amor, navega-me” (p. 25). O eu lírico busca tal saciedade sem saber que, depois, é o vazio: “é só depois do amor / que o amor é um abismo” (Canto cruel, p. 32). Entra-se assim num jogo de altos e baixos, em que ora impera a mansidão e a fluidez do amor, ora o fogo e o espasmo da paixão. Entregando-se de corpo e alma a um sentimento que mescla pluma e pedra, flor e espinho, não resta ao poeta uma alternativa que não sofrer as consequências de sua entrega, expressa, como dissemos acima, no poema O canto das sereias.

 

Aos poucos o eu lírico vai se dando conta das agruras do amor – “contradição de mar / e mangue; / convulsão de mitos / em céu de pântano” (Entre mar e mangue, p. 27) – e de quanto são traiçoeiras as amadas (Bacante, p. 31). Sem se enganar em nenhum momento, mas também não buscando exilar-se do sentimento, o eu lírico segue amando, embora demonstre não mais esperar, nos laços amorosos, o preenchimento das lacunas de seu ser.

 

Na segunda parte (“O exercício de Sísifo”) impera a busca pelo autoconhecimento: “agora eu me expurgo de mim mesmo / em busca do outro em que me encarcero” (O doublé, p. 41). É aí que o mito ganha mais força. É aí que o poeta se reconhece Sísifo, em eterna e vã labuta. Veja-se um trecho do poema O espelho de Sísifo (p. 45):

 

Busca o homem o indizível

Deus que o duplo enigma lhe desvende,

esse: o da vida e o seu anverso.

Serei o espesso espelho

de Sísifo em seu um outro espelho, ou

me perderá para sempre

o pó do tédio sobre o tempo?

(...)

 

O homem busca desvendar o enigma da vida para poder ver a si mesmo desvendado. O eu lírico que não se realizara totalmente no amor, conforme se viu acima, quando tratamos da primeira parte do livro, tenta achar em si as respostas de que necessita: “As minhas arestas, eis meu desafio. / Fio por fio vou me destecendo, / e onde mais cedo mais me artimanho. / Quanto de mim é diamante ou blefe?” (Arestas, p. 43).

 

Novamente, no entanto, a busca é vã. Novamente não logra êxito o eu lírico, aumentando ainda mais seu sentimento de incapacidade diante do mundo, da vida e de si mesmo. Daí a identificação com Sísifo, figura constante em todo o livro. Tal qual o mito grego que se via obrigado a, por castigo dos deuses, empurrar uma pedra para o topo de uma montanha e, tendo chegado enfim próximo de concluir a tarefa, a pedra rola novamente morro abaixo, fazendo-o recomeçar, o poeta reconhece a inutilidade de si, de seus atos, de suas buscas. Compreendemos ainda mais a dura sina de ambos quando percebemos que há, nos dois, a noção da inutilidade. Eles sabem que seu trabalho/busca é inútil. O poema O exercício de Sísifo (p. 50), dá-nos uma exata noção disso: “és todo Sísifo e porque Sísifo, / jamais escalarás o cume de teu ser”.

          Não encontrando em si mesmo as respostas que busca, o eu lírico parece culpar o meio, o ambiente que o cerca, pelas suas angústias. Provavelmente por isso, em alguns poemas desta parte do livro, encontremos a presença constante de outras geografias. Passa-se a uma busca pelo novo, o exótico, como forma, talvez, de encontrar algo que o complete: “nunca te amaram Europas, Orientes / com seus feéricos paços e Sherazades (...) nunca um exotismo, sequer um Saara / que te furtasse ao sempre périplo / de teus mesmos tristes páramos” (O acorrentado, p. 53). O clima persiste em outros poemas, como Paris-Texas (p. 58) e Veneza (p. 59). No primeiro, inclusive, já percebendo esse artifício também como algo inútil, apresenta dois dos mais belos versos do livro: “aos olhos de um homem em crise / toda geografia é o mesmo acidente”. Homem em crise, o eu lírico de Assunção se pôs em busca de novas geografias, numa tentativa de fuga, de evasão. Todavia, parece perceber, em certo momento, que essas geografias apenas lhe proporcionariam novos acidentes, não aqueles topográficos, geológicos, mas os acidentes frutos do olhar do poeta, já “fatigado”, como diria Drummond, por toda uma vida de percalços.

          A “sísifa busca” de Assunção, todavia, não cessa: ao contrário, ganha novos matizes, recheados, como não poderia deixar de ser, com a mais bela poesia, conforme acontece com o poema Natal, 1987 (p. 67). Aqui, o eu lírico já “menino antigo”, relembra o gesto perdido no tempo de vasculhar os sapatos na manhã de Natal. A busca, que normalmente deveria resultar em um sorriso alegre diante do presente, não tem resultado diferente das demais, já aqui narradas: o eu lírico, teimoso, insistente e, diríamos, disposto a assumir mesmo para sua vida o duro “ofício de Sísifo”, “suporta o presente”, mas o presente de sua vida, esse atual e angustiante momento de sua vida. O futuro? O último poema desta parte do livro responde, em tom meio que apocalíptico: “além de mim / (e do escuro que me veste). / nada. / nem mesmo um gato” (Soledade, p. 68).

          A terceira e última parte do livro (“Outro exercício de Sísifo”) trata talvez da maior busca de todas: a busca da poesia. Predominantemente metalinguístico este momento da obra expressa o trabalho não apenas deste, mas de todos os poetas, que também se assumem Sísifos, na eterna tarefa (também “vã”, novamente citando Drummond) de lutar com as palavras.

          O propósito do poeta agora é, não encontrando as desejadas respostas no amor ou em si mesmo, ao menos, conseguir se expressar, confessar-se ao mundo, talvez na esperança de encontrar leitores que com ele se identifiquem, que também se assumam eternos carregadores de pedras: “o que quer o poeta, / senão ser lido? / ser lido e amado / por seu garimpo” (Grafito, p. 72).

          Assunção compara o fazer poético com um trabalho, um duro trabalho de avanços e retornos, de usos e reusos (A pedra lavrada, p. 76), continuando, assim, na sua identificação com a figura de Sísifo. Fazendo do mito adjetivo (O sísifo silêncio, p. 81), o poeta elenca alguns dos elementos com os quais seriam feitos os poemas: “de tempo e palavra”, “do não”, do próprio “enleio de Sísifo”, “do rum das amadas” e do “sísifo silêncio”.

          Mas, teria o poeta, ao escolher como terceira e última grande busca a própria poesia, conseguido enfim encontrar as respostas que desejava? Será que este eu lírico clivado de angústias poderia, no fazer poético, encontrar um pacífico ancoradouro?  O próprio poeta responde a esta pergunta, nos dois últimos poemas. Primeiro em Duplo duelo (p. 87), onde compara a palavra a um revólver, que precise ser armado, apontado e também, lógico, polido, limpo por dentro, ao passo que é áspero por fora. Porém, no momento do confronto, no instante do bang (como diria Antonio Morais de Carvalho em seu poema Pensação), a palavra vez por outra encalha, sem conseguir ser disparada pela língua falha (revisitando aqui, inclusive, Bilac e Augusto dos Anjos). Por fim, em (Desfecho ou tradução, p.89), o poeta se confessa, pela terceira vez, derrotado:

 

Nada me ocupa mais que a palavra

E toda palavra me culpa.

Nada me atrai mais que a palavra

E toda palavra me trai.

 

          O conflito é aparente. A palavra que o “ocupa”, que constitui sua dedicação cotidiana, é também aquela que o “culpa”, que o acusa (pelo quê?). Atraente ao poeta, sedutora, talvez o deixando refém de seus encantos, a palavra é traiçoeira, traidora. E talvez o maior símbolo da traição da palavra, para o poeta, seja o fato de ela jamais assumir os significados que ele pretende.

          No plano da microestrutura, os elementos linguísticos utilizados apenas reforçam a constituição de leitmotive ligados à busca. Incontáveis são as vezes em que são utilizados elementos que remetem à pergunta, à dúvida: pronomes interrogativos (“Qual o suporte do pacto amoroso?” – p. 27) e o próprio sinal de interrogação (“onde guardavas, então, / essa líquida reserva?” – p. 76) são exemplos. Dois pontos (“eis o estoico mundo: / geografia do tédio” – p. 63), apostos, hifens, surgem com o objetivo de trazerem consigo algumas respostas, que logo são demonstradas ilusórias pelos advérbios de negação (“nunca te amou o inelutável” – p. 53) e as conjunções adversativas (“mas, não:” – p. 30). Já os verbos, majoritariamente no presente (“busca o homem o indizível” – p. 45), atestam uma consciência que, tentando superar o passado e sabendo inútil sonhar o futuro, já sabido sombrio, apenas vive o presente, tentando se reerguer enquanto espera a próxima queda (“Agora eu me expurgo de mim mesmo” – p. 41). Já os adjetivos refletem o quão duro e obscuro é o destino do poeta (“pesadas”, “perdido”, “férrea”, “inútil”, além da própria adjetivação de Sísifo – “sísifo silêncio”).

          Enfim, foi trilhado aqui mais um caminho rumo à fértil seara da poesia de José Antônio Assunção. O percurso analítico, dividido, conforme o livro, em três partes, não indica uma rígida divisão de temas na obra. Ao contrário, os três principais temas que encontramos apenas são mais recorrentes em determinado momento, mas não deixam de perpassar toda a obra, assim como a recorrência ao mito. Espero ter dado mais uma contribuição, embora modesta, não apenas para a fortuna crítica sobre o autor, mas também para a divulgação de sua obra para as novas gerações de leitores e estudantes. É preciso que adotemos, também, o ofício de Sísifo: buscando e rebuscando, incontáveis vezes, adentrar o reino da poesia, de que Assunção é bravo guardião, ainda que, assim como acontece com este poeta em Duplo duelo, não saibamos, satisfatoriamente, engatilhar a arma.

 

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Professor Weslley Barbosa