(texto publicado originalmente
em 2017, a título de posfácio, na obra Jardim de Lápides, de Alan
Ventura. Aqui segue revisado e com pequenas modificações)
Quando surge um livro de poesia,
surge para a sociedade o retrato de uma alma, abre-se a caixa mágica da
subjetividade até então habitante de um único ser para, dali em diante,
manter-se perenemente acessível, disponível, como um artefato social, que não
mais pertence ao poeta, mas a todos nós. E é verdade, porque seus sentimentos,
até então guardados para si tanto quanto o que fora colhido com cada
experiência, passam a ser também nossos, porque com eles nos identificamos,
deles viramos cúmplices, neles nos amparamos para purgar os nossos próprios
sentimentos.
É com muito prazer que aceito o convite para ser um dos que apadrinham o nascimento deste Jardim de lápides, juntamente com o amigo Everton Avelino, que prefacia a obra, vendo no rebento que ora é entregue à comunidade os indícios da boa receptividade.
Interessante eu ter escolhido
falar em nascimento para tratar da publicação de uma obra que tem por título a
expressão “jardim de lápides”. O título quereria indicar que a poesia de Alan
Ventura já nasceria morta? Nasceria, ao menos, ou viria abortada? De onde
retirar respostas, onde buscar explicações? Partamos do óbvio, analisemos o
título.
No “jardim” brota a vida, no jardim florescem as ramagens, pousam os pássaros, as borboletas. Semema de denotação positiva, ligado à juventude, à beleza, à alegria, à paz de espírito, à vida, enfim. Mas no jardim de Ventura brotam lápides, pedras geralmente de mármore ou concreto colocadas sobre túmulos, podendo conter inscrições ou apenas o nome da pessoa e a data de sua morte. Neste caso, o semema remete à finitude, à degradação, à tristeza, às lúgubres sensações... Tal união num mesmo sintagma é interessante e extremamente significativo, na medida em que põe em jogo um eu lírico que cultiva, que produz, que faz nascer, mas cujo resultado da labuta reconhece ou imagina morto, sem vida, talvez sem sentido.
E O jardim de lápides de Alan Ventura é realmente esta união de
beleza e pessimismo, de encanto e desencanto. Preocupado com a sonoridade,
ciente da extrema significação que a melopeia (resgatando aqui o célebre conceito
de Ezra Pound) pode atingir, Ventura não deixa, porém, de sentir em sua
expressão a amargura de uma consciência lançada às incertezas, às artimanhas da
vida.
Um dos pontos centrais que
perpassam o livro é a solidão, marcada por um angustiante sentimento de
ausência, já presente no primeiro poema, Baile. Aqui, a “solidão”, termo que finaliza o texto,
arremata e adensa ainda mais o cenário construído pela imagem de uma inominada
e indeterminada figura feminina que, na visão do poeta, “corre nua”, talvez
vagando sem rumo e sem amparo. E justamente este amparo, que talvez pudesse ser
trazido pelo próprio eu lírico, é impossibilitado porque a distância se faz
atroz, matizada pelo pronome “ela”, que marca, pela terceira pessoa que indica,
o distanciamento.
A distância, a solidão e a
ausência seguem marcando as páginas do jardim de Alan Ventura com a negra
mancha da “saudade”, que traz o tema central de Malte:
se for pra dar adeus,
espere primeiro eu terminar
a dose amarga da bebida
e encher o copo
vamos brindar à nossa despedida.
Despedir-se não é fácil,
principalmente para um coração que ama, que deseja. Talvez por isso o jardim de
Ventura seja seara fértil para lápides e não rosas. Nele se perpetuam “o amor e
/ a dor/ de minhas / partidas” (Tapete).
E o poeta confessa, em Testamento:
“eu poderia conceder à arte, / O meu acervo de melancolia”. Poderia e realmente
concede tal acervo, assente ao longo de toda a obra com imagens que ratificam
tal sentimento, como a própria construção que conclui este mesmo poema: “um
tributo ao que se partiria”. Partir-se... É a ruptura constante, o afastar-se o
despedaçar-se ganhando forma a partir das construções verbais. E assim segue o
poeta por vários outros textos, de que são exemplos Insônia, Telescópio,
Análise e Recomeço, deixando, porém, a certeza de que não morre jamais o sentimento
no coração de quem ama: “eu sempre lembrarei de seu abraço” (Recordação).
Diante de tal cenário, resta ao
poeta buscar uma fuga. Daí o eu lírico dirigir seu olhar e, por vezes, o seu
sentimento para elementos não convencionais, até mesmo repugnantes para a
maioria das pessoas. Exemplos disso são a idolatria a um “deus condenado” e o
amor à morte: “amar a morte não era pecado” (Blasfêmia). Tais sememas, inclusive (“morte” e “deus
condenado” – assim mesmo, com minúsculas), repetem-se ao longo do livro.
Disso nasce um ser dúbio, amante,
mas fatigado por não encontrar na figura amada o seu porto seguro. Parte para
dirigir o seu amor àquilo que não leva à redenção, senão a mais sofrimento. E
nas dubiedades de um ser em crise, nos deparamos com um “pálido calar / que
muito me diz” (Dubiamente),
embora não chegue jamais a apresentar as respostas esperadas.
A desilusão ganha o livro,
construindo inúmeros cenários cataclísmicos. Um Artefato maldito invade os “campos floridos”, perturbando a
paz dos pássaros que até então estavam “voando livremente”. E um espetáculo
apocalíptico se inicia:
os reis eram enormes criaturas,
que as ondas pouco a pouco arrastavam,
marcados por enormes queimaduras,
que as águas do oceano alimentavam.
O cenário é retomado em outros
textos, como Canção da Colina,
poema também marcado pelo pessimismo e a imagem da destruição. Mas não apenas
forças sobrenaturais e intangíveis formam o ambiente degradado do livro: em Quintal uma “erva daninha” se
escora na calçada e depois ganha o muro, trazendo consigo a “miudez do tudo / a
sordidez do nada”.
Resta ao poeta uma última
tentativa de fuga: para a musicalidade. Esta parece ser seu alento, buscando
repercutir no encanto das rimas e na insistência dos ecos, o resto da esperança
que ainda possui. Os poemas de forma fixa são o palco perfeito para isso. A
estrutura preferida do poeta é formada por quatro estrofes de quatro versos,
assentes em decassílabos. Vez por outra recorre-se a outro esquema métrico,
como os octossílabos e os eneassílabos. O início do livro é repleto desses
poemas, cujos exemplos mais significativos são Insônia e Jardim
de lápides, onde as anáforas repercutem a significação atroz
agregada ao verbo “jazer”.
Em todo o livro, sonoridade,
rimas, aliterações, assonâncias, anáforas dão tom às aspirações e às dores do
poeta, construindo com musicalidade a representação daquilo que o eu lírico não
encontra no plano do palpável. São exemplos disso não apenas os poemas em forma
fixa, mas também os livres que se utilizam das rimas irregulares para criar
musicalidade.
Importante notar que, se por
vezes a necessidade de rimar roça o âmbito da gratuidade, submetendo a escolha
do léxico à ânsia por sonoridade, às vezes de forma contestável, tal
procedimento aponta, de um modo geral, para um aspecto positivo. Depois de um
período em que a poesia quase foi relegada à função de “decalque”, de símbolo
imagético que tivesse mais a função de entreter os olhos que alentar a alma,
assistimos a uma importante e providencial guinada.
Muitas obras da atualidade têm
resgatado o caráter sonoro, musical, melódico da poesia, estando os poetas cientes
de que escrever poemas é expressar-se principalmente a partir dos recursos da
linguagem, não meramente por imagens e símbolos. Neste sentido, vemos que Alan
Ventura compreende que a poesia é um dos mais ricos e significativos complexos
linguísticos, utilizando trocadilhos, jogos de palavras, cacofonias, entre
tantos outros recursos que certamente tornarão a leitura oral um momento
interessantíssimo de fruição da obra e de amplificação de suas possibilidades
significativas.
Por fim, há as muitas imagens, os
vários achados fanopeicos (ainda retomando Pound). Epitáfio, formando uma relação do eu lítico com uma folha,
traz uma beleza e uma simplicidade que encantam imensamente:
Sou como a folha altiva
De árvore bonita e forte
Fui presa durante a visa
E livre depois da morte.
Já em Tatuagem, a arquitetura da beleza segue versando desejo no
universo de curvas e relevos do corpo da pessoa amada. Tal é o ofício do poeta,
que “tece versos / no corpo e nos universos / de qualquer dimensão”.
Assim, fizemos neste ensaio, que comporá
a obra a título de posfácio, um passeio que buscou abranger os dois grandes temas
que julgamos serem mais relevantes, por perpassarem todo o livro, determinando
a visão de mundo do poeta e dando uma unidade considerável a uma obra tão vasta:
o amor e as angústias existenciais. Interligando estes dois eixos, temos a
sonoridade e as reflexões metalinguísticas, que estão presentes em vários
momentos, destacando que embora trate de seus sentimentos, o poema não se
descuida da expressividade, buscando a melhor forma de comunicar ao leitor
aquilo que lhe inquieta o peito.
Alan Ventura estreia com uma obra
volumosa e consideravelmente uniforme, deixando a certeza de que temos no autor
deste jardim um poeta com um estilo
já formado e uma técnica promissora, elementos que, com o tempo, poderão
determinar aquilo que ora arrisco afirmar: o jovem autor ainda poderá render
boas contribuições à já tão rica literatura paraibana. E é um prazer enorme
fazer parte do início desta história!
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Professor Weslley Barbosa