Falar de literatura fantástica é tratar de um tema que está longe de ser uma
unanimidade para os estudiosos. Ao contrário, a forma como este ramo é abordado
tende a se modificar de acordo com a época ou a tendência a partir da qual o
autor fala.
Uma boa forma de começar é citando Tzvetan Todorov
(2010), que foi um dos primeiros a sistematizar o estudo da literatura
fantástica. Algumas de suas principais contribuições são a ênfase na figura do leitor
e a delimitação de fronteiras entre o fantástico, o maravilhoso e
o estranho. Abaixo trataremos desses três ramos:
O
fantástico: para
Todorov, uma obra seria fantástica quando, no momento da leitura, fosse
despertada uma dúvida no leitor: “o fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (p. 31). Dessa forma, ao entrar em contato, por exemplo, com a
história de um homem que vivia atormentado por um rangido nas tábuas do piso, o
leitor deveria ser tomado pela dúvida se aquilo seria provocado por ratos que
habitassem o assoalho, ou por algum espírito que pretendia perturbar sua paz.
Em resumo: “a hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico” (p.
37).
O estranho: usando o mesmo exemplo acima, caso o leitor, por algum motivo, se deparasse com uma explicação verossímil para aquilo, o texto sairia do âmbito do fantástico e entraria no do estranho. Logo, ocorre o estranho quando o acontecimento que assustou ou intrigou o personagem (e, consequentemente, o leitor) recebe uma explicação no âmbito da realidade plausível (a ação de ratos, alguma falha na estrutura do assoalho etc.). A grande chave para a compreensão do estranho está na “aparência” do sobrenatural, projetada num acontecimento do mundo real: “nas obras que pertencem a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes...” (idem, p. 53).
O
maravilhoso: utilizando
o mesmo exemplo a que recorremos acima, se o rangido nas tábuas do piso fosse
originado da ação de seres sobrenaturais, passaríamos para o território do
maravilhoso. Aqui não há qualquer tipo de estranhamento ou dúvida por parte dos
personagens ou dos leitores: o sobrenatural é entendido como possível e até mesmo
natural no contexto daquela obra, “os elementos sobrenaturais não provocam
qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito (idem,
p. 59 – 60). Desta forma, o maravilhoso ocorreria quando houvesse explicação
para o fato e essa explicação estivesse no âmbito da pararrealidade.
Uma boa forma de entender o âmbito do maravilhoso é pensar no contexto de algum
conto de fadas (por exemplo, Cinderela).
Além das três categorias principais acima, Todorov
traz em sua obra também áreas fronteiriças, como o fantástico-estranho
(durante toda a narrativa os acontecimentos pareciam sobrenaturais, revelando-se
ao final que se tratavam de fatos racionais) e o fantástico-maravilhoso (as
narrativas parecem fantásticas, mas terminam com uma aceitação do
sobrenatural). Apesar de tratar de tais áreas fronteiriças, o próprio Todorov
por vezes cita a imprecisão de sua diferenciação. Por isso mesmo, preferimos aqui
considerar apenas as categorias principais, sendo o fantástico a hesitação total,
o estranho a explicação racional e o maravilho a explicação sobrenatural.
Os postulados de Todorov, no entanto, apesar de
terem sistematizado o estudo da literatura fantástica, receberam posteriormente
algumas críticas. Uma delas foi a de Furtado (1980). Segundo ele, o maior equívoco
de Todorov foi colocar a ênfase no leitor. Desta forma, se para ser fantástica
a obra tivesse que depender da hesitação do leitor, muitas obras não o seriam.
Tentando aplicar uma delimitação mais precisa, Furtado afirma que o diferencial
do fantástico está na ambiguidade.
Assim, segundo ele, a obra não dependeria da figura do leitor para receber a
classificação, mas apenas de sua própria estrutura.
Cremos, entretanto, que a escolha do termo ambiguidade não traz êxito ao autor.
Ora, qual o processo que leva um texto a ser classificado como ambíguo? Cremos
que não seja uma equação matemática nem um programa de computador. Muito menos
um texto possui um determinado aspecto por si só. Todo texto só ganha qualquer
tipo de significado a partir da união de dois elementos indispensáveis: o estilo do autor e as impressões do
receptor. Sem isso, certamente, não haverá significação.
Desse modo, um texto só será ambíguo se essa
ambiguidade for despertada no leitor. E o que é ambíguo para um, pode não ser
para outro. Quem há de negar a possibilidade de, numa roda de amigos, alguém
contar uma piada de teor ambíguo e alguém não rir ao final por não compreender
o sentido daquilo? Simplesmente aquele enunciado não era ambíguo para aquela
pessoa.
De todo modo, não parece ser equivocado o fato de
se colocar no leitor a “responsabilidade” de se perceber a obra como fantástica
ou não a partir da hesitação/ambiguidade. É justamente essa empatia que se
constitui na razão de ser da literatura fantástica.
Seguindo em frente no estudo do tema, Selma Rodrigues (1988, p. 9) nos traz a seguinte
afirmação: “O fantástico refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não
existe na realidade, o imaginário, o fabuloso”. Perceba-se que não há qualquer
referência à hesitação. Nesta perspectiva, colocando a ênfase no “que é criado
pela imaginação” e no “que não existe na realidade”, há de se notar que
Rodrigues aproxima o fantástico daquilo que Todorov via como sendo o estranho
(o que é criado pela imaginação tem, portanto, explicação plausível e, em
verdade, não existe no mundo real – a perfeita definição do estranho para
Todorov). Põe-se, portanto, fim à classificação tripartite.
Já Maria Cristina Batalha (2011) coloca o
fantástico como sendo um “rompimento com o mundo”, uma “poética da incerteza”
(p. 12 e 13). Aqui temos novamente a questão da incerteza, da falta de uma
explicação plausível. Isto é ainda mais potencializado com a questão do
“rompimento com o mundo”, ou seja, algo que interrompe a ordem natural das
coisas e nos coloca diante do inesperado e do incompreensível.
Outra definição que também nos chamou atenção foi a
de Irene Bessière (s/d) quando nos diz que o fantástico surge do real, toma
para si elementos do real, mas de um real em crise. Essa crise é percebida
pelos leitores, somos nós que verificamos nos textos uma ruptura, somos nós que
vivenciamos o estranhamento. E não se confunda as coisas: por mais que o real
esteja presente em grande parte dos textos, quando o incomum, o pararreal
acontece, nós verificamos ali uma crise, e é neste momento em que a crise
acontece que estaria o fantástico.
Ora, diante desse contexto repleto de conceitos e
opiniões, como, afinal, se comportar em relação ao fantástico? Tal pergunta
certamente não possui uma resposta exata e isso se deve principalmente ao que
Bessière afirma a respeito de os estudos acerca do fantástico ainda estarem se
desenvolvendo, de modo que muita coisa ainda pode surgir. Com o advento do
fantástico moderno tivemos uma amostra do quão variada e dinâmica pode ser essa
literatura e que os esquemas em certo ponto fechados que muitos autores
delimitaram não são perfeitamente aplicáveis.
O fato é que não existe dúvida de que o fantástico
nos coloca diante de narrativas que unem o mundo real com o
inexplicável, algo que surge para romper a ordem normal dos fatos. No Dicionário
de termos literários, de Massaud Moisés, encontramos uma citação (Vax 1960:
5, 6) que afirma que o fantástico “resulta de 'introduzir terrores imaginários
no seio do mundo real'”.
Uma observação importante a se fazer é que não se
deve entender como fantástico um texto religioso de determinada cultura, mesmo
que tal texto não signifique nada para a pessoa que o está classificando. Isto
porque para aquele contexto, aquela cultura, aquele autor e seus leitores, tal
fato não é nada inexplicável: o fato de um deus emergir do fundo das águas e
flutuar sobre as pessoas é, sem dúvida, algo compreendido por aquelas pessoas
como perfeitamente possível para um deus. O fantástico é o que não se explica e
o que interfere no real sem gerar uma compreensão.
Da mesma forma, um texto que não traga um mínimo do
real, certamente não pode ser compreendido como fantástico, mas sim como
fantasia ou maravilhoso, classificados por muitos como subgêneros do
fantástico.
O fato é que, mesmo indefinida e de classificação
fluida, a literatura fantástica permanece como uma das tendências que mais têm
crescido desde a segunda metade do século XX, irradiando-se por tendências como
o realismo mágico (que não foi tratado aqui porque merece consideração a parte
em um texto futuro). Querida de autores e leitores por todo o mundo, aparece
sempre no topo das listas das obras mais vendidas e certamente ainda há de
render muitos textos de qualidade.
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Professor
Weslley Barbosa