29/05/2019

LITERATURA: natureza e conceito


Ao tomar o termo literatura para exame, é preciso que se tenha em mente o que se compreende com o referido vocábulo. Isso porque, durante muito tempo, o termo foi relacionado às diversas áreas de conhecimento produzidas pelo homem, desde as ciências até a filosofia, conforme afirma Massaud Moisés em A criação literária (2012). Além disso, o termo também costuma ser usado, até mesmo nos dias atuais, para se referir à bibliografia produzida a respeito de determinado assunto, ou seja, o conjunto de obras de determinada área do conhecimento: literatura jurídica, literatura médica etc.

 

Cabe ainda destacar, para asseverar ainda mais a necessidade de uma delimitação o mais precisa possível, que o termo litteratura (que remonta ao latim) tinha, nas origens de sua utilização, o mesmo sentido de grammatiké, seu correlato grego. Logo, originariamente literatura significava o ensino das letras e da escrita em geral (TAVARES, 2002, p. 21), não tendo nada a ver com a arte produzida por meio de palavras, conforme adotado atualmente.

 

A partir do século XVIII passa-se gradualmente ao conceito de literatura hoje adotado (MOISÉS, 2012, p. 5), referindo-se às manifestações escritas com finalidade estética, ou seja, aos textos escritos com objetivos artísticos, dedicados à fruição, ao deleite. Aqui neste site adotaremos esta noção mais estrita da literatura, tomada exclusivamente como conjunto de obras artísticas produzidas por meio de textos.

 

Para pavimentar os caminhos que devemos seguir afim de definir o que é a literatura, começamos por lembrar que, ao produzir um texto, todos nós buscamos comunicar algo a alguém, de modo que a literatura traz consigo uma natureza expressiva e comunicativa. Como todo texto, a literatura serve de elo, de contato, entre duas subjetividades: a de quem produz/comunica e a de quem exerce o papel de destinatário daquela informação.

 

O fato é que, no amplo complexo de interesses humanos, existe espaço para se afirmar o seguinte: nem sempre queremos expressar algo prático, que comunique uma realidade palpável e que busque informar alguém sobre determinado acontecimento. Às vezes, queremos expressar sentimentos, ou nem mesmo isso: queremos comunicar nossas impressões acerca do mundo, mesmo que não as entendamos direito. A literatura surge como a expressão do que sentimos, do que almejamos, do que pensamos, do que gostaríamos de pensar e ver acontecer. Para Antônio Soares Amora (2006, p. 51), “uma das características da obra literária é o tipo de conhecimento da realidade que ela transmite: conhecimento intuitivo e individual”.

 

Ao intuir a respeito de determinada coisa o ser humano submete aquele objeto do mundo real ou realizável aos imperativos de sua consciência. A intuição independe de conhecimento teórico ou racional, tratando-se de uma faculdade subjetiva e inata de nossa espécie. Com a intuição, nós estabelecemos um contínuo que passa pela contemplação, pela assimilação, pela pressuposição, pela idealização, pela avaliação e pela conclusão. Do momento em que observamos a coisa ou experimentamos o sentimento até o exato ponto em que concluímos algo a seu respeito, tudo pode se dar de maneira muito rápida, mas sempre estabelece fortíssimos impulsos emocionais em nossa consciência. Da observação de uma bela paisagem ou da experiência do amor ou do medo, podem resultar inúmeras impressões, todas elas estabelecidas a partir de uma atitude intuitiva.

 

Portanto, um texto literário é sempre repleto de subjetivismo, de sentimentos, de visões do real, posto que é o resultado (ou a expressão) de uma intuição.

 

Porém, dizer que a literatura é a expressão de uma intuição é muito pouco, uma vez que isso é algo comum a todas as artes. E disto não nos resta dúvidas: toda arte é a expressão de uma intuição. E, se é verdade, conforme mostraremos mais a frente, que não é qualquer intuição, mas sim uma intuição voltada para o belo, é também mister dizer que esta intuição há de espraiar-se em diferentes formas de realização, conforme a natureza da arte escolhida pelo artista para se expressar.

 

A diferença da literatura para as demais artes está no fato de que ela se utiliza da linguagem verbal como forma de expressão. Logo, se o que torna a pintura única são as cores, se o que constitui a matéria prima do músico é o som, se o expectador toma conhecimento da dança por meio dos movimentos do corpo do dançarino, a literatura chega ao público por meio das palavras (orais ou escritas). Deste modo, a literatura é a arte que, assim como as outras, expressa uma intuição, mas o faz particularmente, na medida em que se utiliza da linguagem verbal, das palavras, para fazê-lo.

 

É importante, agora, abrirmos um parêntese. Ninguém se expressa num vácuo, ninguém comunica algo sem a expectativa de um interlocutor. Portanto, o caráter expressivo do texto literário coloca em evidência também o seu caráter dialógico, sua essencialidade interativa. O texto literário inaugura, quando de sua leitura, um processo dialógico que aproxima duas consciências, a do autor que o criou e a dos leitores, que o fruem. Porém, nenhum leitor chega ao texto “vazio”, sem experiências, sem contribuições a dar à história de interpretações que aquele texto possui. Portanto, o ato de ler um texto é também o ato de lhe doar sentidos, de trazer para a obra outras significações, além daquela que pretendia o autor.

 

Mas um texto literário não é apenas a expressão de uma intuição por meio de palavras. Ele é um acontecimento histórico, tanto do ponto de vista do seu autor quanto do ponto de vista dos seus leitores. Um texto surge num momento histórico, fruto de uma determinada sociedade, de uma determinada cultura, carrega em si ideologias. Ao mesmo tempo, os leitores também entram em contato com o texto num determinado período, numa determinada cultura, trazendo para a leitura suas ideologias etc. Portanto, o tudo o que envolve a literatura é historicamente vinculado e, por tal vinculação, estabelece um contato do qual pode resultar tanto as afinidades quanto os embates. Autor e leitores interagem num processo dinâmico, intenso e por vezes caótico porque essa relação nunca implica apenas o texto, mas todo o complexo contextual que a envolve.

 

Chegados a este ponto, ainda assim não conseguimos estabelecer a totalidade do complexo acontecimento literário. É que estabelecemos que a literatura é i) expressão; ii) fruto de uma intuição; iii) realizada por meio de palavras; iv) historicamente situada. Porém, nem tudo o que constitui uma intuição é literatura, ainda que seja expresso por meio de um texto. Caso contrário uma carta pessoal seria literatura, uma opinião expressa num artigo de jornal seria literatura e até mesmo uma simples reflexão seria literatura. É que falamos já daquilo que diferencia o texto literário de outras artes, mas faltou estabelecer o que mais o aproxima de todas elas: a busca do belo.

 

Antes de aprofundar nessa questão, lembremos que a literatura pode conseguir muito. Pode induzir o outro à reflexão, pode proporcionar um momento de lazer e distração, pode emocionar, revoltar, incomodar, conscientizar e ensinar. Ela pode ser o elo de comunicação entre o autor e o seu leitor. Ela pode tornar-se um documento histórico, um panfleto para determinada atuação social, o ponto de partida para acionarmos memórias há muito perdidas. Enfim, pode ser tudo isso e muito mais, mas é bom que se tenha em mente que, quando surge, a única e originária finalidade do texto literário é comunicar uma impressão, uma intuição a respeito de algo, mas comunicar de forma interessante, de modo a encantar, emocionar, distrair... Quando se propõe a produzir um texto de cunho artístico, o escritor não está interessado em ensinar, em criar uma teoria, em fazer história. Ele pretende fundamentalmente comunicar-se através do belo.

 

Logo, é a estética, a beleza, a magia, que constituem o produto com o qual o artista buscará trabalhar. Na busca do belo, o artista, munido de sua intuição, de sua subjetividade, obviamente há de submeter a realidade à sua própria visão de mundo, buscando expressar aquilo que mais se aproxime dessa visão, enriquecida de uma força intuitiva. Isso faz com que a realidade plasmada em texto seja diferente daquela observável no mundo real, uma realidade muitas vezes hipotética, transfigurada, ou seja, uma realidade ficcional. Como “realidade ficcional” é um termo impreciso, incoerente e mesmo inadequado, costuma-se adotar em teoria literária (e também é esta a posição que adotamos nesta página) o termo pararrealidade.

 

A pararrealidade é um ambiente inspirado em nosso mundo real, mas diferente dele porque, em última análise, ele não é o nosso mundo, mas uma possibilidade acerca de como ele poderia ser (ARISTÓTELES, 2005, p. 28), uma reconstrução do mundo, operada no interior da consciência do artista e externada por meio do texto literário. Tal é o grau de perícia e beleza conferidos pelos bons artistas que, verdadeiramente, passamos a considerar os textos lidos como verdadeiros, de tal modo que por meio deles rimos, nos emocionamos, nos revoltamos, refletimos... É como se estabelecêssemos um pacto com o autor, aceitando tomar sua obra como uma extensão do mundo palpável, como a confissão de algo real. Ou mais: como a confissão de algo nosso, ou pelo menos acontecendo ao nosso redor.

 

Logo, se antes dissemos que a literatura é fruto de uma intuição, é agora o momento de estabelecer que só há ficção e pararrealidade na literatura porque ela se vale de uma “intuição criativa”. Assim, fechamos desta forma o nosso conceito de literatura, que embasará todas as considerações a respeito da arte literária que havemos de estabelecer nesta página: a literatura é a expressão verbal e historicamente situada de uma intuição criativa, voltada para o belo.

 

Por meio do conceito acima, inegavelmente amplo, buscamos ser o mais precisos quanto seja possível diante do objeto múltiplo e fluido do qual tratamos. Esperamos que o estudante e o interessado em geral entenda que, em arte, nunca se pode abranger a totalidade das coisas, pois a qualquer momento uma nova obra pode surgir e colocar por terra tudo o que foi dito até então. Tal risco existe, mas nem por isso deve desestimular o estudo. Apenas faz parte do encanto que é sondar as maravilhas do âmbito artístico.

 

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OBSERVAÇÃO:

 

Este texto é a versão resumida das ideias que apresento em minha obra A literatura como acontecimento (BARBOSA, 2022). Lá, desenvolvo de forma bem mais detalhada cada um dos elementos que compõem o acontecimento literário, de sua gênese à recepção pelos leitores.

 

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Professor Weslley Barbosa